O sol brilhava forte, mas o tempo parecia ter parado. Depois de alguns dias isolados, o mundo parecia distante. Estávamos tão imersos no nosso pequeno universo dentro da caravana, longe das preocupações, que nos sentíamos em perfeita sintonia.
Estava sentada na pequena mesa da caravana, com um café acabado de fazer, e ainda a fumegar na caneca, enquanto o Paulo ouvia algumas músicas no telemóvel. Ele gosta de experimentar novas melodias, e eu adoro quando ele se dedica à música. É uma das muitas coisas que gosto nele: a forma como se entrega, a paixão que coloca nas pequenas coisas do dia a dia.
Sorri, enquanto dei um gole no café.
— Sabes… Estava aqui a pensar… Alguma vez criaste uma música a pensar em mim? Ou em nós?
Ele levantou os olhos do telemóvel, surpreso, mas com um sorriso no canto dos lábios.
— Hum… Talvez…
— ****Talvez? Isso não me soa nem a “sim” nem a um “não”.
Ele riu-se.
— Já. Claro que já.
Eu curiosa, inclinei-me um pouco para ele.
— E posso ouvir?
Ele fez uma pausa dramática.
— Ainda não está pronta… Mas está ali. Nos acordes, nas palavras que ainda não escrevi.
Sorri, tocando de leve na mão dele.
— Então vou esperar. Mas quero ser a primeira a ouvir.
Segurou-me na mão, com um brilho no olhar.
— Serás sempre a primeira a ouvir. Mesmo antes de eu a tocar.
Fiquei em silêncio durante um tempo, apenas a olhá-lo.
— Vamos jogar alguma coisa? — Perguntei, quebrando o silêncio.
— Eu só jogo se for algo em que eu possa ganhar! — Brincou ele, rindo, enquanto se sentava ao meu lado.
— Vamos ver quem ganha, então! — Respondi, ainda a sorrir.
Enquanto mexia na bagageira da caravana à procura de um jogo, acabei por encontrar um velho baralho de cartas esquecido entre algumas caixas.
Ergui o baralho com um sorriso.
— Olha o que encontrei! Achas que ainda te lembras como se joga ou já enferrujaste?
Ele cruzou os braços, fingindo-se ofendido.
— Enferrujado?! Por favor, eu nasci para isto.
— Então vamos ver. Mas lá fora, tá um sol maravilhoso que eu não quero desperdiçar.
Minutos depois, estávamos sentados na relva, a brisa morna trazia consigo o cheiro suave das árvores ao nosso redor.
Ele baralha as cartas com um sorriso maroto.
— Preparada para perder?
— Perdão?! Desde quando é que eu perco para ti? — Digo, cruzando os braços, a fingir indignação.
— Desde sempre. Mas gosto que mantenhas a ilusão. — Disse ele, enquanto dava as cartas.
— Tu falas muito. Vamos ver quem vai rir no final.
Jogámos a primeira rodada. E faço uma jogada forte.
— BOOM! Como se diz? Respeita a lenda! — Digo alto, a bater a mão na mesa.
Ele olhou para as minhas cartas, e fingiu estar em choque.
— Isso foi sorte! Pura sorte!
Encostei-me na cadeira, confiante.
— Claro, claro… Ou talvez eu seja só naturalmente talentosa.
— Ok, agora já tá pessoal. Preparada para a reviravolta do século?
Continuámos a jogar.
Ele joga a carta final com um exagero dramático.
— E ISSO, MEUS SENHORES, É COMO SE FAZ!
— Não acredito… Estavas a fingir que eras péssimo, não estavas?!
Ele encolheu os ombros, com um sorriso convencido.
— Nunca revelo as minhas estratégias.
— És um vigarista do baralho.
— Eu prefiro “génio estratégico”. — Disse, rindo alto.
Suspirei, e agarrei nas cartas de novo
— Vá, distribui outra vez. Desta vez, sem truques!
Ele piscou-me o olho.
— Sem truques… talvez.
As horas passaram rapidamente, o jogo e as gargalhadas mantiveram-nos entretidos como se o tempo não tivesse importância. Cada jogada trazia mais piadas, mais desafios e, claro, mais carinho entre nós.
Enquanto jogávamos, fiquei a pensar na transformação que a quarentena tinha causado na nossa vida. No início, havia o medo do desconhecido, a insegurança, as notícias constantemente alarmantes. Mas agora, ali sentados, nas tardes calmas da caravana, sentia que havia encontrado algo mais.
— Sabes, já não sei se estou a ganhar ou a perder este jogo… — Disse, a rir. Na verdade, estava a tentar desviar a conversa para algo mais íntimo. Queria saber o que ele sentia sobre a nossa vida agora, sobre os dias tranquilos e sobre o futuro.
Ele, atento, deu-me um sorriso suave, deixando o jogo de lado.
— Eu acho que estamos todos a perder lá fora, mas aqui… aqui estamos a ganhar. — Respondeu, olhando-me nos olhos.
Senti uma pequena onda de calor no peito, mas antes que pudesse responder, o telefone dele tocou, interrompendo o momento. Era um número desconhecido, e ele hesitou antes de atender.
— Sim? — Disse, com a voz cautelosa, mas logo relaxou ao ouvir a voz familiar do outro lado.
Aproveitei a oportunidade para me levantar e esticar as pernas. Olhei para o horizonte tranquilo que se estendia à nossa frente. Estava a adorar aquele lugar, aquele pedaço de paz isolado. Ao fundo, as árvores balançavam suavemente com o vento, e o rio continuava o seu curso tranquilo.
Quando desligou a chamada, aproximou-se de mim.
— Era a minha mãe… Estava a perguntar como estávamos, como é óbvio, e a dizer que já sente a nossa falta, e que está tudo bem por lá.
Olhei para ele com curiosidade.
— Nunca te ouvi falar da tua mãe. Ou do teu pai.
Ele desviou o olhar, e encolheu os ombros.
— Pois… não falo muito sobre eles.
— Porquê?
Soltou um suspiro, mexendo distraído nas cartas.
— Sei lá… Não é fácil. Não somos exatamente próximos.
Pensativa, hesitei antes de perguntar.
— Eles… sabem que eu existo?
Ele olhou para mim por um momento antes de desviar o olhar outra vez.
— A Raquel sabe.
— Sim, isso eu sei. Mas e os teus pais?
— Acho que a minha mãe desconfia… A Raquel deve lhes ter contado qualquer coisa. — Disse, desconfortável.
— Tens medo da reação deles?
— Talvez. Ou talvez eu só… não queira abrir essa porta.
Sorri de leve, e toquei-lhe na mão.
— Não precisas de me contar nada se não quiseres. Mas sabes que podes, certo?
Ele olhou finalmente para mim, com um meio sorriso.
— Eu sei.
Apertei-lhe suavemente a mão.
— Só não quero ser um segredo para sempre.
Baixou o olhar, pensativo, antes de assentir.
— Nem eu quero isso.
Ele mexe distraidamente nas cartas, mas já não parece interessado no jogo. Respira fundo e, sem olhar diretamente para mim, começa a falar.
— Os meus pais nunca foram muito… presentes. Estiveram sempre muito ocupados com o trabalho, havia sempre alguma coisa mais importante do que estar conosco.
— E tu e a Raquel ficaram de lado?
— A Raquel soube sempre lidar melhor com isso. Acho que ela aceitou mais cedo que éramos nós por nós. Eu, por outro lado, passei anos a tentar chamar a atenção deles… Boas notas, música, o que fosse. Mas nunca foi suficiente.
— Deve ter sido difícil.
Ele soltou um suspiro e olhou para o céu por um instante, como se tentasse organizar os pensamentos.
— Foi. Mas eventualmente deixei de tentar. Parei de esperar alguma coisa deles.
— E é por isso não falas neles?
— Acho que sim. Não é raiva, sabes? Não os odeio. Só… deixei de sentir que fazem parte da minha vida. A Raquel, sim. Ela sempre esteve lá. Mas os meus pais? Eles são quase estranhos para mim.
Apertei levemente a mão dele, e por um momento nenhum dos dois fala. O vento sopra de leve, o sol aquece a pele.
— E agora, com esta chamada… achas que querem recuperar o tempo perdido?
— Não sei. Talvez. Ou talvez seja só culpa. Mas não sei se estou pronto para abrir essa porta outra vez.
— O que quer que decidas, eu estou aqui, tá?
Sorri e olhei para ele. Eu sabia que, mesmo isolados, o mundo não parava. As pessoas continuavam a viver as suas vidas, ainda que à distância. A sensação de estar afastada de todos os outros parecia ser um peso às vezes, mas a minha presença ali, com o Paulo, tornava tudo mais suportável.
— Eu sinto falta da minha mãe, do meu pai e do meu irmão, mas ao mesmo tempo, sinto que encontrei uma nova forma de viver. Não tenho de me preocupar com nada… só contigo, aqui.
Ele sorriu e, num impulso, puxou-me para um abraço apertado.
— Eu também, Laura. E, para ser sincero, não queria estar em mais nenhum lugar agora."
O resto da tarde passou com mais risos, mais conversas soltas sobre o nada e o tudo, e, como sempre, uma conexão cada vez mais profunda entre nós.
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