Um dia na vida de Laura
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Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3




Os dias no Gerês passavam num equilíbrio perfeito entre o amor e a liberdade. Vivíamos apenas um para o outro, sem pressa, sem horários, sem medo.

O Paulo decidiu ir pescar no rio ali perto. Decidi fazer-lhe companhia e levei um livro e uma manta.

Ele estava com um sorriso tranquilo, a observar a linha da cana de pesca.

— Será que hoje a sorte está do meu lado? Este rio tem seus próprios mistérios.

Eu estava a ler, mas sorri para ele sem desviar os olhos da página.

— Eu diria que a sorte já está do teu lado, Paulo. A paz daqui é tudo o que precisamos. Não achas?

Lançou a linha novamente, de forma relaxada.

— Talvez tenhas razão... Às vezes, não precisamos de mais nada. Mas, quem sabe, se conseguir pescar algo, ainda consigo provar que a sorte me sorriu."

Ri, e fechei o livro por um momento.

— Estás a tentar convencer-me de que pescar é uma arte, ou estás apenas à procura de desculpas para relaxar um pouco mais?

Ele faz uma cara, de quem está muito ofendido e diz:

— Pescar é uma arte, Laura! A arte da paciência... mas, entre nós, eu sou mais artista da tranquilidade do que pescador de verdade.

— Se a tranquilidade é o que procuras, acho que já encontraste o melhor lugar.

Após vários minutos de espera, com a linha quieta na água, começou a sentir uma leve vibração na cana.

— Espera... está a acontecer algo.

Ergui os olhos do livro, curiosa.

— Será? Finalmente, o grande momento?

Ele com um sorriso, começa a puxar a linha com cuidado.

— Vamos ver se a minha sorte não me decepciona agora.

Com um movimento cuidadoso, ele puxou a cana e uma pequena truta aparece na superfície da água, a brilhar ao sol.

Levantei-me da manta, surpresa e encantada.

— Uau! Conseguiste mesmo! É linda!

Com um sorriso satisfeito, mas com uma expressão de respeito pelo peixe, ele diz:

— É pequena, mas é um sinal. Talvez a verdadeira arte da pesca seja respeitar o que a natureza nos dá, não importa o tamanho.

— Talvez seja isso... Pescas-te mais uma lição do que um peixe, não achas?

Ele olhou o peixe uma última vez antes de o devolver à água com um gesto cuidadoso

— Sim, e isso é mais valioso. De volta ao seu lar, onde deve estar.

— Uma bela forma de terminar o dia. Agora, podemos voltar à nossa paz e ao nosso livro, não é?

— Sim, de volta ao que importa. O resto é apenas o som do rio.

Ele caminhou até mim, colocou a cana de lado, limpou as mãos ás calças e deitou-se ao meu lado na manta.

— Acho que estou a ficar bom nisto. — Disse, olhando para o céu.

Sem desviar os olhos da página, respondo-lhe:

— Se devolver os peixes à água contar como "bom", então sim, és incrível.

— Pensa assim, se todos devolvessem os peixes, nunca faltariam peixes no rio.

Sorri, ainda concentrada no livro.

— Filosofia de pescador moderno.

O silêncio confortável entre os dois foi interrompido por uma brisa mais fresca. Franzi a testa ao sentir uma gota cair na página do livro, e olhei para o céu, desconfiada.

— Achas que vai chover?

Ele abriu um olho, preguiçoso.

— Nah… Deve ser só umas gotas passageiras.

Mas, como se o tempo tivesse ouvido e quisesse contrariá-lo, mais algumas gotas começaram a cair. Depois, um pouco mais fortes.

— Ótimo, agora estraguei o livro! — Sentando-me rapidamente.

— Vá, não sejas dramática. Nem está a chover assim tanto. — Disse, sentando-se também.

Foi então que o céu se abriu. Como se alguém tivesse virado um balde gigante, a chuva começou a cair de repente, grossa e pesada. Soltei um grito e tentei levantar-me depressa, enquanto o Paulo ficou ali sentado, a rir.

— Estás à espera de quê?! Anda, temos que nos abrigar! — Gritei por cima da chuva.

Ele levantou-se devagar, já completamente encharcado.

— Para quê? Já estamos molhados!

Abriu os braços, deixando a água escorrer pelo rosto, enquanto eu olhava, incrédula.

— És impossível… — Sorri

Pegou-me pela mão e puxou-me para a chuva.

— Anda, já que estamos nisto, pelo menos aproveitamos.

A chuva caía sem piedade, encharcando as nossas roupas e deixando o cabelo colado à pele. Eu tentei afastar a franja molhada do rosto, mas não consegui conter o riso ao ver o Paulo de braços abertos, rodopiando como uma criança em dia de trovoada.

— Vais apanhar uma constipação, idiota!

Ele a rir, aproxima-se de mim.

— Vale a pena se for assim!

Num impulso, agarrou-me pela cintura e girou-me no ar. Soltei um grito misturado com uma gargalhada, as minhas mãos apertam-lhe os ombros para não escorregar. Quando os meus pés tocaram novamente o chão encharcado, ficamos frente a frente, tão próximos que o som da chuva pareceu abafar-se por um momento.

— Nunca pensaste que uma tempestade podia ser assim divertida?

Mordi o lábio, para tentar não sorrir demais.

— Talvez com a pessoa certa.

— Sabes que, tecnicamente, podíamos correr para dentro da caravana e secar-nos…

— Ou podíamos ficar mais um bocadinho. — Disse desafiando-o.

Ele não respondeu com palavras. Em vez disso, inclinou-me e beijou-me, um beijo quente, em contraste com as gotas frias que escorriam pelo nosso rosto. Respondi ao beijo sem hesitar, os meus dedos entrelaçaram-se nos cabelos molhados dele enquanto a chuva continuava a cair.

Quando finalmente nos afastamos, estávamos sem fôlego e riamos como se a tempestade fosse a menor das preocupações.

— Ok… Agora sim, acho que merecemos um cobertor seco.

— E um chá quente, antes que te transforme num pinguim. — Agarrei-lhe na mão e puxei-o.

De mãos dadas, corremos em direção à caravana, deixando para trás a manta ensopada e o livro, como testemunhas silenciosas.

Já de noite, na caravana, iluminada apenas pela luz suave de uma lanterna, ganha uma atmosfera acolhedora e tranquila. Dentro, o cheiro de comida caseira mistura-se com a brisa fresca que entra pelas janelas abertas.

Estávamos na pequena cozinha, onde o espaço é apertado, mas a cumplicidade torna tudo perfeito. O som de uma música suave, toca baixinho ao fundo, criando uma sensação de conforto e intimidade.

Eu mexia na frigideira enquanto o Paulo cortava os legumes, a sorrir para mim.

— Adoro estes momentos. É simples, mas é tudo o que precisamos, não é?

Ele com um olhar tranquilo e sereno, colocava os pedaços de tomate na frigideira.

— Sim... Não é preciso mais do que isto. A comida, a música, a tua companhia. Acho que estamos a construir um bom pedaço de felicidade aqui.

— Às vezes as melhores memórias são feitas de coisas simples como esta.

Ele pousou a faca de lado, olhou para mim e estendeu-me a mão.

— Queres dançar? Mesmo sem espaço, podemos tentar.

— Claro, porque não? Não precisamos de mais do que os nossos pés descalços e música para dançar.

E ali, no pequeno espaço da cozinha da caravana, descalços, começamos a dançar suavemente. Os pés deslizavam pelo chão de madeira, enquanto os nossos corpos moviam-se ao ritmo da música. Não havia pressa, os risos suaves.

— Este é o melhor lugar para estar... com a pessoa certa, não achas?

Respirei fundo, sentindo o cheiro do seu cabelo e o calor do abraço dele.

— Sim... está perfeito.

O tempo parece desacelerar, e, sem palavras, a cumplicidade cresce. Continuamos a dançar, agora mais próximos, até que o som da música se mistura com o som das nossas respirações. Quando o silêncio chega, não é desconfortável, mas sim cheio de promessas.

Finalmente, depois de algum tempo, sem pressa de nada, o momento transforma-se em algo mais íntimo. A noite lá fora está estrelada, o céu limpo, e a caravana é o nosso refúgio perfeito.

Com um toque suave, as roupas caem e, juntos, deitados, a noite é nossa. A suavidade das carícias, a paixão nas mãos dele, são a combinação perfeita para o amor.

Deitada no peito dele, os dedos traçavam pequenas linhas imaginárias na sua pele, enquanto o som da respiração se mistura com o som distante da natureza.

De repente, o meu pensamento torna-se mais inquieto. Interrompo a calma do momento com uma pergunta que paira no ar.

— Paulo... achas que vamos ser descobertos?

Ele, tocava suavemente nos meus cabelos e beijou-me a testa, tentando manter a calma no tom de voz.

— Descobertos? O que queres dizer?

Levantei ligeiramente a cabeça e olhei para ele, com uma expressão de dúvida nos olhos.

— Vi umas notícias... O governo começou a falar de planos de desconfinamento. As empresas vão começar a chamar os funcionários de volta, a polícia vai aumentar as fiscalizações... será que o nosso refúgio vai acabar?

Silêncio.

O vento lá fora agita as folhas das árvores, mas ali dentro, as minhas palavras pareciam flutuar no ar pesado. O Paulo sentiu a tensão crescer, e olhou para mim, um pouco mais sério, mas ainda a tentar acalmar a mente inquieta.

Suspirou suavemente, e abraçou-me com mais força.

— Eu sei. Eu também ouvi as notícias. O mundo está a mudar, mas... aqui, neste momento, podemos controlar o que acontece entre nós. Não precisamos de ter todas as respostas agora.

— E se nos encontrarem? E se tudo mudar, e tivermos que voltar a... a correr, a esconder-nos? O que vai ser de nós?

Passou uma mão pela minha coluna, a tentar transmitir-me algum conforto, mesmo que o futuro parece-se incerto.

— Olha para nós, Laura. Olha para este momento. Não temos todas as certezas, e o mundo está um caos, sim... mas, enquanto estivermos juntos, temos algo muito maior que qualquer medo. Temos o agora, e isso... isso é tudo o que podemos controlar.

Fiquei em silêncio, refletindo as palavras dele. Senti o calor do seu corpo, o conforto do momento, mas a incerteza ainda me pesa o coração. Temo que, mais cedo ou mais tarde, a paz que encontrei ali com ele possa ser interrompida.

— Eu só... não quero que acabe. Não quero que nos obriguem a deixar tudo para trás.

— Não vamos deixar nada para trás. O que temos, o que estamos a viver, isso não se pode roubar. Mesmo que o mundo mude, nós, aqui dentro, escolhemos o que fazemos. Vamos aproveitar, enquanto podemos.

Fechei os olhos, aconchegando-me mais junto a ele, ainda com as perguntas a pairar na mente, mas a confiança dele deu-me um pouco de alívio. Sei que, por agora, enquanto estiver ali, na segurança dos seus braços, o futuro não importa tanto quanto o presente.

Finalmente, ele quebrou o silêncio, com uma voz mais grave, como se estivesse a ponderar em voz alta.

— Mas sabes que, mais cedo ou mais tarde, vamos ter de voltar, não sabes?

Ergui os olhos, as palavras dele eram uma constatação fria da realidade que, apesar de tudo, ambos sabemos que vai chegar.

— Voltar? Mas... não podemos continuar aqui? Não podemos simplesmente ignorar o mundo?

Ele girou na minha direção, com os olhos fixos nos meus, mais sérios agora.

— Eu queria que fosse assim, Laura. Mas a verdade é que não podemos ficar para sempre à margem, a viver num sonho... mais cedo ou mais tarde, as coisas vão cobrar-se.

Mordo o lábio inferior, e sinto a dureza daquilo que ele diz, mas sei que, no fundo, ele está certo.

— Eu sei… Só queria que pudéssemos ficar aqui, sem nos preocuparmos com o que está a acontecer. Mas, como dizes, não podemos fugir para sempre.

— Não podemos. A vida chama-nos de volta, embora este momento seja perfeito. Às vezes, é preciso enfrentar o que está fora, não podemos esconder-nos aqui eternamente.

— Eu sei... Eu só... não quero que tudo acabe. Não quero perder o que estamos a viver. — Disse triste.

— Eu também não. Eu também não. Mas, seja o que for que o futuro nos reserve, nós vamos atravessá-lo juntos. Não importa o que venha depois, temos o agora, e isso, por enquanto, é tudo o que importa.


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Sábado, mais um daqueles dias tranquilos que já começavam a ter um sabor doce.

Eu estava na cozinha, a preparar o pequeno almoço enquanto ouvia o Paulo a tocar guitarra. A música, como sempre, dava um toque especial à manhã. O som das cordas, as notas suaves, preenchiam o ambiente e dava-me uma sensação de bem-estar.

Sorri para si mesma, imaginando como seria se tudo na vida fosse assim: simples, calmo e recheado de momentos compartilhados.

O Paulo entrou na cozinha, ainda com a guitarra a tiracolo, e abraçou-me por trás, fazendo-me rir.

— Café para a minha musa? — Perguntou ele, com um sorriso maroto.

Eu ri e respondi, ainda a brincar:

— Só se me deres um beijo primeiro!

Ele não precisou de mais incentivo. Virou-me lentamente e, com um sorriso que iluminava o rosto dele, deu-me um beijo longo e suave. A sensação de estar ali, com ele, fazia tudo parecer perfeito. A pressão do mundo, não parecia tão presente, e tudo o que importava era aquele momento.

Depois do beijo, ele afastou-se, pegou na caneca de café e olhou para mim.

— Sabes, a quarentena tem coisas chatas, mas não consigo imaginar passar esse tempo com mais ninguém além de ti.

Sorri, agarrei também na minha caneca e sentei-me à mesa.

— Eu também não. Não me importo de ficar aqui com tudo o que há para acontecer lá fora. Desde que estejas aqui, com este sorriso e essa guitarra, estou bem.


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Os dias na caravana passaram-se com a mesma calma, mas algo estava diferente agora. Tínhamos conseguido criar uma rotina única para os dois, com momentos de diversão, e também de reflexão.

Logo pela manhã, começávamos o dia com café, às vezes conversávamos sobre o que o futuro nos poderia reservar, mas sem nos prendermos a isso. Cada um dedicava-se a algo, eu a ler um livro ou a escrever, enquanto o Paulo aproveitava para estudar as músicas que tanto amava ou fazer pequenos arranjos na caravana. À tarde, saíamos para caminhar, explorávamos os arredores, ou simplesmente ficávamos ali, sentados, a observar a natureza.

No fundo, o que está a acontecer é uma adaptação natural ao estilo de vida que agora partilhamos. Não havia pressa, n pressões. Estávamos a viver o momento, sem mais preocupações.


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O sol brilhava forte, mas o tempo parecia ter parado. Depois de alguns dias isolados, o mundo parecia distante. Estávamos tão imersos no nosso pequeno universo dentro da caravana, longe das preocupações, que nos sentíamos em perfeita sintonia.

Estava sentada na pequena mesa da caravana, com um café acabado de fazer, e ainda a fumegar na caneca, enquanto o Paulo ouvia algumas músicas no telemóvel. Ele gosta de experimentar novas melodias, e eu adoro quando ele se dedica à música. É uma das muitas coisas que gosto nele: a forma como se entrega, a paixão que coloca nas pequenas coisas do dia a dia.

Sorri, enquanto dei um gole no café.

— Sabes… Estava aqui a pensar… Alguma vez criaste uma música a pensar em mim? Ou em nós?

Ele levantou os olhos do telemóvel, surpreso, mas com um sorriso no canto dos lábios.

— Hum… Talvez…

— ****Talvez? Isso não me soa nem a “sim” nem a um “não”.

Ele riu-se.

— Já. Claro que já.

Eu curiosa, inclinei-me um pouco para ele.

— E posso ouvir?

Ele fez uma pausa dramática.

— Ainda não está pronta… Mas está ali. Nos acordes, nas palavras que ainda não escrevi.

Sorri, tocando de leve na mão dele.

— Então vou esperar. Mas quero ser a primeira a ouvir.

Segurou-me na mão, com um brilho no olhar.

— Serás sempre a primeira a ouvir. Mesmo antes de eu a tocar.

Fiquei em silêncio durante um tempo, apenas a olhá-lo.

— Vamos jogar alguma coisa? — Perguntei, quebrando o silêncio.

— Eu só jogo se for algo em que eu possa ganhar! — Brincou ele, rindo, enquanto se sentava ao meu lado.

— Vamos ver quem ganha, então! — Respondi, ainda a sorrir.

Enquanto mexia na bagageira da caravana à procura de um jogo, acabei por encontrar um velho baralho de cartas esquecido entre algumas caixas.

Ergui o baralho com um sorriso.

— Olha o que encontrei! Achas que ainda te lembras como se joga ou já enferrujaste?

Ele cruzou os braços, fingindo-se ofendido.

— Enferrujado?! Por favor, eu nasci para isto.

— Então vamos ver. Mas lá fora, tá um sol maravilhoso que eu não quero desperdiçar.

Minutos depois, estávamos sentados na relva, a brisa morna trazia consigo o cheiro suave das árvores ao nosso redor.

Ele baralha as cartas com um sorriso maroto.

— Preparada para perder?

— Perdão?! Desde quando é que eu perco para ti? — Digo, cruzando os braços, a fingir indignação.

— Desde sempre. Mas gosto que mantenhas a ilusão. — Disse ele, enquanto dava as cartas.

— Tu falas muito. Vamos ver quem vai rir no final.

Jogámos a primeira rodada. E faço uma jogada forte.

— BOOM! Como se diz? Respeita a lenda! — Digo alto, a bater a mão na mesa.

Ele olhou para as minhas cartas, e fingiu estar em choque.

— Isso foi sorte! Pura sorte!

Encostei-me na cadeira, confiante.

— Claro, claro… Ou talvez eu seja só naturalmente talentosa.

— Ok, agora já tá pessoal. Preparada para a reviravolta do século?

Continuámos a jogar.

Ele joga a carta final com um exagero dramático.

— E ISSO, MEUS SENHORES, É COMO SE FAZ!

— Não acredito… Estavas a fingir que eras péssimo, não estavas?!

Ele encolheu os ombros, com um sorriso convencido.

— Nunca revelo as minhas estratégias.

— És um vigarista do baralho.

— Eu prefiro “génio estratégico”. — Disse, rindo alto.

Suspirei, e agarrei nas cartas de novo

— Vá, distribui outra vez. Desta vez, sem truques!

Ele piscou-me o olho.

— Sem truques… talvez.

As horas passaram rapidamente, o jogo e as gargalhadas mantiveram-nos entretidos como se o tempo não tivesse importância. Cada jogada trazia mais piadas, mais desafios e, claro, mais carinho entre nós.

Enquanto jogávamos, fiquei a pensar na transformação que a quarentena tinha causado na nossa vida. No início, havia o medo do desconhecido, a insegurança, as notícias constantemente alarmantes. Mas agora, ali sentados, nas tardes calmas da caravana, sentia que havia encontrado algo mais.

— Sabes, já não sei se estou a ganhar ou a perder este jogo… — Disse, a rir. Na verdade, estava a tentar desviar a conversa para algo mais íntimo. Queria saber o que ele sentia sobre a nossa vida agora, sobre os dias tranquilos e sobre o futuro.

Ele, atento, deu-me um sorriso suave, deixando o jogo de lado.

— Eu acho que estamos todos a perder lá fora, mas aqui… aqui estamos a ganhar. — Respondeu, olhando-me nos olhos.

Senti uma pequena onda de calor no peito, mas antes que pudesse responder, o telefone dele tocou, interrompendo o momento. Era um número desconhecido, e ele hesitou antes de atender.

— Sim? — Disse, com a voz cautelosa, mas logo relaxou ao ouvir a voz familiar do outro lado.

Aproveitei a oportunidade para me levantar e esticar as pernas. Olhei para o horizonte tranquilo que se estendia à nossa frente. Estava a adorar aquele lugar, aquele pedaço de paz isolado. Ao fundo, as árvores balançavam suavemente com o vento, e o rio continuava o seu curso tranquilo.

Quando desligou a chamada, aproximou-se de mim.

— Era a minha mãe… Estava a perguntar como estávamos, como é óbvio, e a dizer que já sente a nossa falta, e que está tudo bem por lá.

Olhei para ele com curiosidade.

— Nunca te ouvi falar da tua mãe. Ou do teu pai.

Ele desviou o olhar, e encolheu os ombros.

— Pois… não falo muito sobre eles.

— Porquê?

Soltou um suspiro, mexendo distraído nas cartas.

— Sei lá… Não é fácil. Não somos exatamente próximos.

Pensativa, hesitei antes de perguntar.

— Eles… sabem que eu existo?

Ele olhou para mim por um momento antes de desviar o olhar outra vez.

— A Raquel sabe.

— Sim, isso eu sei. Mas e os teus pais?

— Acho que a minha mãe desconfia… A Raquel deve lhes ter contado qualquer coisa. — Disse, desconfortável.

— Tens medo da reação deles?

— Talvez. Ou talvez eu só… não queira abrir essa porta.

Sorri de leve, e toquei-lhe na mão.

— Não precisas de me contar nada se não quiseres. Mas sabes que podes, certo?

Ele olhou finalmente para mim, com um meio sorriso.

— Eu sei.

Apertei-lhe suavemente a mão.

— Só não quero ser um segredo para sempre.

Baixou o olhar, pensativo, antes de assentir.

— Nem eu quero isso.

Ele mexe distraidamente nas cartas, mas já não parece interessado no jogo. Respira fundo e, sem olhar diretamente para mim, começa a falar.

— Os meus pais nunca foram muito… presentes. Estiveram sempre muito ocupados com o trabalho, havia sempre alguma coisa mais importante do que estar conosco.

— E tu e a Raquel ficaram de lado?

— A Raquel soube sempre lidar melhor com isso. Acho que ela aceitou mais cedo que éramos nós por nós. Eu, por outro lado, passei anos a tentar chamar a atenção deles… Boas notas, música, o que fosse. Mas nunca foi suficiente.

— Deve ter sido difícil.

Ele soltou um suspiro e olhou para o céu por um instante, como se tentasse organizar os pensamentos.

— Foi. Mas eventualmente deixei de tentar. Parei de esperar alguma coisa deles.

— E é por isso não falas neles?

— Acho que sim. Não é raiva, sabes? Não os odeio. Só… deixei de sentir que fazem parte da minha vida. A Raquel, sim. Ela sempre esteve lá. Mas os meus pais? Eles são quase estranhos para mim.

Apertei levemente a mão dele, e por um momento nenhum dos dois fala. O vento sopra de leve, o sol aquece a pele.

— E agora, com esta chamada… achas que querem recuperar o tempo perdido?

— Não sei. Talvez. Ou talvez seja só culpa. Mas não sei se estou pronto para abrir essa porta outra vez.

— O que quer que decidas, eu estou aqui, tá?

Sorri e olhei para ele. Eu sabia que, mesmo isolados, o mundo não parava. As pessoas continuavam a viver as suas vidas, ainda que à distância. A sensação de estar afastada de todos os outros parecia ser um peso às vezes, mas a minha presença ali, com o Paulo, tornava tudo mais suportável.

— Eu sinto falta da minha mãe, do meu pai e do meu irmão, mas ao mesmo tempo, sinto que encontrei uma nova forma de viver. Não tenho de me preocupar com nada… só contigo, aqui.

Ele sorriu e, num impulso, puxou-me para um abraço apertado.

— Eu também, Laura. E, para ser sincero, não queria estar em mais nenhum lugar agora."

O resto da tarde passou com mais risos, mais conversas soltas sobre o nada e o tudo, e, como sempre, uma conexão cada vez mais profunda entre nós.


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