O ecrã do computador iluminava o meu rosto, mas não conseguia apagar a expressão cansada dos meus olhos. O confinamento já durava quase um mês, e a pressão parecia estar a consumir tudo. Os dias eram longos e iguais, um turbilhão de ansiedade e solidão. Embora falássemos todos os dias, o vazio do silêncio estendia-se entre as palavras. A distância física, a impossibilidade de estarmos juntos, tornava tudo mais difícil.
Suspirei, sentindo o peso da saudade esmagar-me o peito.
— Não aguento mais. Sinto-me presa, vazia, como se a vida estivesse em pausa.
O Paulo estava do outro lado do ecrã, com o rosto tão visível quanto o meu. Sentia-se da mesma forma. Mas sabia que não podia deixar a conversa seguir para um buraco de frustração e tristeza. Algo tinha que mudar. Algo audacioso, talvez.
Ele respirou fundo e olhou diretamente para os meus olhos, como se as palavras que se seguiam fossem um risco, uma tentativa de escapar à realidade que nos envolvia.
— E se… fugíssemos?
Fiquei em silêncio. O pedido parecia um sussurro rebelde, uma ideia que vinha de algum lugar do coração dele. Franzi a testa, incrédula.
— Fugir para onde?
O Paulo mordeu o lábio inferior, tentando encontrar as palavras certas. Os dedos tamborilavam na mesa enquanto ele pensava, a voz quase inaudível quando finalmente falou.
— Para longe daqui. Podemos pegar na caravana e ir para um sítio isolado. Só nós os dois. Sem notícias, sem medo, só nós.
Senti o coração acelerar. A ideia era insana, sem dúvida. Fugir da quarentena, dos riscos, das regras… Tudo parecia errado, mas ao mesmo tempo, o pensamento de estar com ele, sem mais nada a separar-nos, fazia sentir-me viva de uma forma que as paredes da minha casa nunca fizeram.
— Isso é uma loucura, Paulo… — Murmurei, com os olhos fixos no computador, mas já a sentir a tentação tomar conta de mim.
Mas ele sabia como fazer com que as palavras caíssem no lugar certo.
— Sim, é loucura. Mas às vezes, as loucuras são a única coisa que nos fazem sentir vivos. Já não posso viver mais assim, Laura. Não consigo mais ver-te só por um ecrã. Quero estar contigo de verdade. Fugir de tudo isso, até que o mundo lá fora nos deixe viver em paz. Só nós.
A voz dele tinha algo de sincero e urgente, e eu percebi que ele estava a senti exatamente o mesmo que eu. A dor da distância. O vazio que preenchia cada pedaço do seu ser. O desejo insano de se sentir livre, de poder viver de novo. A caravana… a ideia parecia tão fora do contexto, mas ao mesmo tempo tão tentadora.
Fechei os olhos por um momento, imaginando-o ali, ao meu lado. Estávamos juntos na mesma luta, na mesma incerteza, mas ele ofereceu-me uma fuga. Uma oportunidade de voltar a ser quem eu era antes, sem máscaras, sem regras.
— E o coronavírus, Paulo? Como é que vamos fazer isso com tudo o que está a acontecer? Não podemos simplesmente sair e…
Ele interrompeu-me, quase como se já soubesse o que eu ia dizer.
— Eu sei, mas eu estou disposto a correr o risco, Laura. Se há algo que aprendi com tudo isto, é que a vida é curta demais para perdermos o que realmente importa. E o que importa agora é nós dois. Não podemos deixar que o medo de um futuro incerto nos prenda para sempre. Por mais irresponsável que isso pareça… eu só quero estar contigo. Sem esperar mais. Sem esperar nada.
Senti uma mistura de emoções dentro de mim. Medo. Desejo. Culpa. Liberdade. A ideia de deixar tudo para trás, de me lançar ao desconhecido com ele… parecia certo de uma maneira estranha, mas, ao mesmo tempo, algo me segurava. A razão. A responsabilidade. As consequências de um ato impulsivo.
Mas a saudade dele, a vontade de estar com ele, a certeza de que não iria conseguir continuar sem sentir o toque, o calor da presença dele, tornavam a dúvida difícil de engolir.
— Eu… não sei, Paulo. Não sei se conseguimos… Eu sinto tanto a tua falta, mas há algo de errado nisto.
Balançava-me entre a razão e a emoção, e o peso do momento deixava-me tonta. O Paulo percebeu a hesitação e, com a voz suave, tentou trazer-me de volta à realidade.
— Sei que é difícil. Sei que parece impossível. Mas às vezes, precisamos de um momento de coragem, não achas? Só para saber que podemos fazer algo por nós mesmos, sem esperar que o mundo nos dê permissão.
O silêncio pairou entre nós. Ambos pensámos, mas nenhum sabia ao certo o que seria da ideia que acabara de nascer.
Olhei para ele, tentando visualizar a caravana, a estrada vazia, o céu à noite. Eu queria tanto isso, queria tanto a sensação de liberdade que ele me estava a oferecer. Queria deixar para trás o medo e as incertezas, e entregar-me ao momento.
— E se fizermos isso… não vamos nos arrepender?
O Paulo sorriu, os olhos cheios de uma esperança silenciosa.
— Acho que a única coisa que nos vamos arrepender é de não termos tentado.
O meu coração bateu ainda mais forte. A sensação de aventura, de algo novo, de voltar a viver… parecia irresistível.
— Ok… vamos fazer isso. Vamos fugir.
O sorriso dele foi instantâneo, como se o peso do mundo tivesse sido retirado dos seus ombros. E por um breve momento, os dois, sentimo-nos mais próximos do que nunca.
A fuga estava prestes a acontecer. Não importava o que o mundo pensasse, nem o que viria a seguir. Só importava aquele momento, aquele desejo insano de estarmos juntos.
E a decisão estava tomada.
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