Domingo | 22 de Março de 2020




Olhei pela janela da sala. E o mundo lá fora continuava suspenso no tempo. As ruas, que costumavam estar cheias de vida, estavam vazias. Não havia crianças a brincar, casais a passear de mãos dadas ou grupos de amigos a rir nas esplanadas. Só o silêncio.

Soltei um longo suspiro e encostei a testa ao vidro.

Nunca pensei que um simples domingo pudesse parecer tão solitário.

Peguei no telemóvel e, sem grande entusiasmo, abri as redes sociais. Passei os olhos pelas notícias, que eram sempre as mesmas: números de infetados a subir, hospitais a ficarem cheios, o mundo inteiro a tentar encontrar um rumo. Depois, vi memes sobre quarentena, vídeos de desafios absurdos, e pessoas a exibir os seus pães caseiros e rotinas de exercícios em casa.

Revirei os olhos e pousei o telemóvel no sofá.

"Tenho de me mexer."

Fui até à cozinha determinada a fazer algo produtivo. Encontrei uma receita que tinha guardado há meses — um caril de grão-de-bico e espinafres que sempre quis experimentar. Liguei a coluna de som e deixei que a música enchesse a casa.

Dancei sozinha enquanto cortava os ingredientes, rodopiando no meio da cozinha, sentindo o corpo fluir ao ritmo da melodia. Por momentos, era como se não estivesse sozinha, como se a normalidade ainda existisse.

O cheiro das especiarias encheu o ar, trazendo-me uma sensação inesperada de conforto. Sentei-me à mesa e olhei para o prato colorido à minha frente. Devia sentir-me orgulhosa. Mas, ao contrário do que imaginava, o silêncio pesou ainda mais.

A solidão têm um jeito cruel de se infiltrar nos momentos mais simples.

Peguei no telemóvel, e abri a conversa com o Paulo.

“O que fazes para não enlouquecer fechado em casa?”

A resposta veio rápida.

“Vejo séries, faço exercício e penso em ti.”

“Boa técnica. Talvez tente essa última parte.”

“Recomendo. Mas para melhores resultados, devias dizer em voz alta o quanto gostas de mim.”

Revirei os olhos.

“Que convencido.”

“Sou apenas um homem apaixonado em quarentena. Dá-me um desconto.”

Senti o peito aquecer. Havia algo reconfortante na leveza com que ele entrava nos meus dias.

Depois de comer, tentei ler um livro, mas a mente divagava. Tentei ver uma série, mas, em vez de prestar atenção, fiquei a olhar para o teto, perdida em pensamentos.

A quarentena estava a testar a minha paciência. A falta de contacto físico, o peso das notícias, a incerteza do amanhã. Mas havia pequenos momentos que me faziam sentir menos sozinha.

Dançar na cozinha. Trocar mensagens com Paulo.

E talvez, só talvez, fosse o suficiente por agora.

Deslizei os dedos pelo ecrã e parei no contacto da minha mãe. Desde o início da quarentena que tentava falar com ela todos os dias. Precisava de ouvir a sua voz.

Carregou no botão de chamada e esperou.

Minha filha! — A voz calorosa da minha mãe ecoou do outro lado. — Estava mesmo a pensar em ti. Como estás, amor?

Fechei os olhos por um instante, absorvendo aquele som familiar que sempre me fazia sentir em casa.

Estou bem, mãe. Quer dizer… Hoje tentei distrair-me, cozinhei, dancei um bocado pela casa…

Isso mesmo, tens de encontrar maneiras de ocupar a cabeça! Aqui também temos tentado manter a rotina, mas confesso que está a custar. O teu pai e o teu tio passam o dia todo a ver notícias. Parece que não falam de outra coisa.

Eu percebo… Mas eles estão bem, não estão?

Sim, sim. Claro que estão preocupados, mas por enquanto, está tudo bem. E tu, minha filha? Tens-te alimentado bem? Tens dormido?

Mãe… estou fechada em casa. Não tenho exatamente uma vida muito agitada.

— Não gozes comigo! Mesmo assim, é fácil descuidarmo-nos.

Sorri.

Eu sei. Mas estou bem, prometo.

Houve um pequeno silêncio antes dela falar de novo, num tom mais suave.

E o coração, Laura? Como anda?

A mãe sabia sempre quando havia algo para além do óbvio.

Está a adaptar-se a tudo isto — Respondi, tentando fugir à conversa.

E o Paulo?

Está bem. Temos falado todos os dias… ele tem sido incrível comigo.

— Isso é bom, meu amor. Precisas de alguém que cuide de ti, mesmo à distância.

Assenti, mesmo sabendo que ela não me estava a ver.

Sim… eu sei.

E o Fred? Ainda falam?

Hesitei antes de responder.

Falei com ele há uns dias. Foi bom… mas, mãe, eu estou com o Paulo. O Fred faz parte do meu passado.

— Eu sei, querida. Só perguntei porque sei que ele foi importante para ti. Mas se estás feliz, é isso que importa.

Fechei os olhos, e senti-me grata pela sensibilidade da minha mãe.

Obrigada, mãe.

— Sempre, meu amor. Agora vai descansar. Amanhã é um novo dia e eu quero ver-te com essa energia boa que me estás a passar.

Vou tentar. Beijo grande.

— Beijo, filha. Amo-te.

A conversa com a minha mãe trouxe-me paz, mas também deixou-me a pensar.

O que significava realmente estar feliz?

Peguei na manta, aninhei-me no sofá e fechei os olhos. Não sei durante quanto tempo. Pois logo a seguir (ou não) o telemóvel voltou a vibrar.

Era uma mensagem do António.

“Ei, como é que estás? Espero que não estejas a dançar sozinha pela casa, tipo ‘livre e leve’ na quarentena… porque se sim, preciso de ver isso!”

Ri-me e respondi rapidamente.

“Bem, já fiz isso hoje, mas nada demais. Só cortei uns vegetais e dancei ao som de uma playlist meio aleatória. Acho que estou a perder a noção do tempo.”

“Sim, bem-vinda ao clube! Eu já me sinto quase um expert em filmes e podcasts sobre autoajuda… Mas a questão é: como é que vamos sair desta rotina? Vai ser tipo, ‘olá, vida real, à quanto tempo não te via!’?”

“Imagina a ressaca pós quarentena, António. Vai ser uma revolução de todos os hábitos que tentámos criar nestes meses.”

“Eu vou ser a pessoa mais estranha da Terra. Vai ser o fim da minha imagem.”

“Ah, isso eu não duvido! Hahah! Mas olha, vou contar-te uma coisa: estive a cozinhar, e até que me saí bem. Vou considerar abrir um restaurante ‘Quarentena e Cozinha’!”

“Hahaha! Se abrires esse restaurante, eu sou o primeiro a ir. Quero ver esse talento culinário de quarentena ao vivo.”

“Talento é uma palavra muito forte… mas vá, se um dia isso acontecer, vou fazer questão de ter a tua cara estampada na fachada como o maior fã. Vai ser um sucesso!”

“Olha, qualquer desculpa para comer bem, não é? Agora, a sério, diz-me uma coisa: como é que estás a lidar com tudo isto? Não vou ser o ‘amigo fofinho’ aqui, mas sabes que podes desabafar sempre, não é?”

Pensei por um momento antes de responder.

“Tenho tentado, sabes? Tento manter-me ocupada, mas há dias em que a saudade e a solidão pesam mais… A verdade é que isto tem sido mais difícil do que imaginava.”

“Eu percebo. E é normal, não estás sozinha nisso. Mas lembra-te de que a quarentena vai passar, e tudo isto vai ser uma história para contar.”

“Acho que, no fim, vai ser um bom conto, sim. Pelo menos, tenho tentado olhar por esse lado.”

“Isso mesmo! E não te esqueças: sempre que precisares de rir um bocado ou desabafar, aqui estou eu. Ok?”

“Obrigada, António. A sério, não sei o que faria sem os amigos. Só tenho de aprender a não enlouquecer por causa do isolamento.”

“É isso! E, na dúvida, faz mais uma dança pela casa. Quem sabe até te tornas a sensação da quarentena!”

“Hahah! Vou tentar. Mas aviso já: sem público, sem palco, sem câmeras.”

“Eu entendo, vou respeitar o teu ‘momento de diva’ em casa.”

Sorri, sentindo um pouco do peso da solidão aliviar. Conversas assim, com risadas e aquele toque de leveza, eram tudo o que eu precisava para enfrentar mais um dia nesta rotina incomum.

“Acho que, por hoje, é isto. Vou tentar ver um filme ou ler algo. Vamos sobrevivendo.”

“Combinado. Fico à espera do teu show de dança da próxima vez. Abraço virtual!”

Fechei os olhos novamente, respirando fundo.

E mais uma vez o telemóvel vibra:

“Amo-te”

Sorri ao ler e respondi:

"Também te amo. Vamos aguentar."


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