A televisão estava ligada, mas eu quase não piscava enquanto ouvia o discurso do Presidente. Sentada no sofá, segurava uma caneca de chá que já tinha arrefecido, esquecida entre as mãos frias.
"Pela primeira vez em democracia, Portugal entra em Estado de Emergência."
As palavras ecoaram na sala, pesadas. Eu já sabia que isto ia acontecer, mas ouvir a confirmação deixava tudo mais real, mais definitivo. O confinamento ia apertar. Nada de encontros, nada de saídas desnecessárias, nada de normalidade por um tempo indeterminado.
Peguei no telemóvel e abri a conversa com o Paulo. As mensagens trocadas nos últimos dias estavam lá — chamadas perdidas, áudios cheios de saudades e promessas de que, quando tudo isto passasse, iamos recuperar o tempo perdido.
Sem pensar muito, liguei-lhe.
Ele atendeu logo, como se estivesse à espera.
— Estás a ver isto? — Perguntei, sem sequer dizer "olá".
— Sim… — A voz dele soava mais grave, e mais carregada. — Estado de Emergência. Nunca pensei ouvir isto na minha vida.
Suspirei.
— Eu também não. Parece um pesadelo sem fim.
Ficamos em silêncio por um instante. Não era um silêncio desconfortável, mas sim aquele tipo de silêncio que só acontece quando duas pessoas sentem a mesma coisa e não precisam de palavras para entender.
— O que é que estás a pensar? — Perguntou ele.
Eu desviei o olhar para a janela. As luzes da cidade pareciam mais fracas, como se o próprio mundo estivesse a encolher.
— Que tenho medo. Não do vírus em si, mas do que isto nos está a fazer… às pessoas, ao mundo, a nós.
Ele passou a mão pelo cabelo e suspirou.
— Eu também. Mas sabes uma coisa? Há uma certeza que eu tenho no meio disto tudo.
— O quê?
Ele sorriu levemente.
— Que quando isto acabar, vou estar aí, à tua porta. E não vai ser para te dizer "olá".
Ri baixinho, mas os meus olhos estavam marejados.
— Que promessa bonita, meu amor. Espero que a cumpras.
— Eu nunca falho com aquilo que quero.
O meu coração deu um salto.
— Então já não tenho medo. Pelo menos, não disto.
Quando desliguei, olhei novamente para a televisão, mas já não senti o mesmo aperto no peito.
O mundo podia estar em pausa, mas aquilo que sinto por ele não estava.
E isso bastava.
Pousei o telemóvel no sofá e fechei os olhos por um momento. O silêncio da casa pesava-me nos ombros, e, sem querer, a minha mente levou-me a um lugar onde evitava ir com frequência.
Paulo. Fred.
Duas histórias, dois homens, dois caminhos que a vida me colocou à frente.
Suspirei e puxei a manta sobre as pernas, tentando organizar os pensamentos.
Com o Fred, tudo tinha começado de forma intensa, quase inevitável. Ele era charmoso, sedutor, aquele tipo de homem que entra numa sala e capta toda a atenção sem precisar de fazer grande coisa. Com ele, vivi paixão, desejo, adrenalina. Mas também frustração.
Havia momentos em que senti que ele me queria verdadeiramente, que os toques e as palavras não eram apenas parte da forma como ele se movia pelo mundo. Mas, noutras vezes, parecia que eu era apenas mais um pedaço da sua vida agitada, algo passageiro e substituível.
E foi isso que acabou por me desgastar. A sensação de nunca saber exatamente onde estava com ele. De estar sempre à beira do precipício, sem saber se ele me segurava ou se me deixava cair.
Depois veio o Paulo.
O “corredor”. O homem que apareceu quando eu nem sequer procurava nada. Ele foi diferente desde o início. Menos palavras vazias, mais gestos sinceros. Um olhar que dizia mais do que qualquer discurso ensaiado.
O Paulo não precisava de grandes jogos ou mistérios. O que ele sentia por mim estava lá, claro como o dia, sem esconderijos. E talvez fosse isso que mais me assustava. Porque com ele, sentia-me segura.
No fundo, era esse o grande dilema.
Com o Fred, eu tive a euforia, o perigo, o fogo.
Com o Paulo, eu tenho o calor, a segurança, a chama que aquece sem queimar.
E agora, fechada em casa, no meio de uma pandemia que parecia tirar-me o chão, percebi algo que tentava negar há semanas.
O Paulo era a única certeza que eu tinha.
Peguei novamente no telemóvel, abri a conversa com ele e fiquei a olhar para a última mensagem.
"Quando isto acabar, vou estar aí, à tua porta."
E sorri.
Olhei para o telemóvel por longos segundos. O nome do Paulo ainda estava no topo da conversa, mas, sem saber bem porquê, deslizei o dedo pela lista de contatos até parar no Fred.
O meu coração bateu um pouco mais rápido.
Fazia dias que não falávamos. O nosso fim não tinha sido um corte brusco, mas uma despedida silenciosa, onde ambos entendemos que já não fazia sentido continuarmos. Ainda assim, ele tinha sido uma parte importante na minha vida. E, naquele momento estranho, em que o mundo parecia mais frágil do que nunca, senti vontade de ouvir a voz dele.
Sem pensar, carreguei no botão de chamada.
Do outro lado, a espera foi longa o suficiente para que me arrependesse. Estava prestes a desligar quando ouvi a voz dele.
— Laura?
Sorri ao reconhecer aquele tom meio rouco.
— Oi, Fred… não esperavas esta, pois não?
Ele riu baixinho.
— Nem um pouco. Mas confesso que é bom ouvir-te.
Encostei-me novamente no sofá, sentindo um conforto inesperado.
— Vi o discurso do Presidente agora… e acho que me bateu forte. Isto tudo parece tão surreal.
— Eu sei. — A voz dele estava mais séria. — O mundo virou-se de cabeça para baixo, e parece que ninguém sabe o que fazer.
Ficamos em silêncio por um momento. Depois, ele quebrou o gelo.
— Então… e tu? Como estás?
Hesitei.
— Estou bem. Quer dizer… dentro do possível. Isto de estar fechada em casa tem-me feito pensar muito.
— Em mim? — Perguntou ele, com aquele tom de provocação que eu conhecia tão bem.
Revirei os olhos, mas sorri.
— Parvo. Em muita coisa. Mas sim… em ti também.
Ele suspirou.
— Eu também penso em ti, sabes? Mas fico tranquilo em saber que estás bem… e acompanhada.
Percebi o que ele queria dizer e decidi ser sincera.
— Sim, o Paulo tem sido um grande apoio…
— Eu sei — Interrompeu ele, com a voz calma. — E, sinceramente, não fiquei surpreendido. Já tinha percebido que havia algo ali.
— E isso incomoda-te?
Demorou a responder.
— Seria mentira se dissesse que não. Mas acima de tudo, só quero que estejas feliz.
O meu peito apertou-se. Porque, apesar de tudo, ainda existia uma ternura imensa entre nós.
— Obrigada, Fred. Isso significa muito para mim.
— Sempre, Laurinha. Sempre.
Ficámos mais um pouco, falamos de tudo e de nada, até a conversa ir arrefecendo. Quando desligamos, senti um nó na garganta.
Não era arrependimento. Não era dúvida.
Era apenas saudade de um tempo que já não voltava mais.
Pousei o telemóvel na mesa. Respirei fundo e segui para o quarto.
O passado foi bonito. Mas o futuro… o futuro ainda estava por escrever.
Antes de me deitar, regressei à sala e vi que tinha uma notificação no telemóvel.
Li.
"Se fechar os olhos, quase consigo sentir-te aqui."
Era uma mensagem do Paulo e respondi de imediato:
"Então fecha os olhos. E imagina que estou a abraçar-te."
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