Os dias no Gerês passavam num equilíbrio perfeito entre o amor e a liberdade. Vivíamos apenas um para o outro, sem pressa, sem horários, sem medo.
O Paulo decidiu ir pescar no rio ali perto. Decidi fazer-lhe companhia e levei um livro e uma manta.
Ele estava com um sorriso tranquilo, a observar a linha da cana de pesca.
— Será que hoje a sorte está do meu lado? Este rio tem seus próprios mistérios.
Eu estava a ler, mas sorri para ele sem desviar os olhos da página.
— Eu diria que a sorte já está do teu lado, Paulo. A paz daqui é tudo o que precisamos. Não achas?
Lançou a linha novamente, de forma relaxada.
— Talvez tenhas razão... Às vezes, não precisamos de mais nada. Mas, quem sabe, se conseguir pescar algo, ainda consigo provar que a sorte me sorriu."
Ri, e fechei o livro por um momento.
— Estás a tentar convencer-me de que pescar é uma arte, ou estás apenas à procura de desculpas para relaxar um pouco mais?
Ele faz uma cara, de quem está muito ofendido e diz:
— Pescar é uma arte, Laura! A arte da paciência... mas, entre nós, eu sou mais artista da tranquilidade do que pescador de verdade.
— Se a tranquilidade é o que procuras, acho que já encontraste o melhor lugar.
Após vários minutos de espera, com a linha quieta na água, começou a sentir uma leve vibração na cana.
— Espera... está a acontecer algo.
Ergui os olhos do livro, curiosa.
— Será? Finalmente, o grande momento?
Ele com um sorriso, começa a puxar a linha com cuidado.
— Vamos ver se a minha sorte não me decepciona agora.
Com um movimento cuidadoso, ele puxou a cana e uma pequena truta aparece na superfície da água, a brilhar ao sol.
Levantei-me da manta, surpresa e encantada.
— Uau! Conseguiste mesmo! É linda!
Com um sorriso satisfeito, mas com uma expressão de respeito pelo peixe, ele diz:
— É pequena, mas é um sinal. Talvez a verdadeira arte da pesca seja respeitar o que a natureza nos dá, não importa o tamanho.
— Talvez seja isso... Pescas-te mais uma lição do que um peixe, não achas?
Ele olhou o peixe uma última vez antes de o devolver à água com um gesto cuidadoso
— Sim, e isso é mais valioso. De volta ao seu lar, onde deve estar.
— Uma bela forma de terminar o dia. Agora, podemos voltar à nossa paz e ao nosso livro, não é?
— Sim, de volta ao que importa. O resto é apenas o som do rio.
Ele caminhou até mim, colocou a cana de lado, limpou as mãos ás calças e deitou-se ao meu lado na manta.
— Acho que estou a ficar bom nisto. — Disse, olhando para o céu.
Sem desviar os olhos da página, respondo-lhe:
— Se devolver os peixes à água contar como "bom", então sim, és incrível.
— Pensa assim, se todos devolvessem os peixes, nunca faltariam peixes no rio.
Sorri, ainda concentrada no livro.
— Filosofia de pescador moderno.
O silêncio confortável entre os dois foi interrompido por uma brisa mais fresca. Franzi a testa ao sentir uma gota cair na página do livro, e olhei para o céu, desconfiada.
— Achas que vai chover?
Ele abriu um olho, preguiçoso.
— Nah… Deve ser só umas gotas passageiras.
Mas, como se o tempo tivesse ouvido e quisesse contrariá-lo, mais algumas gotas começaram a cair. Depois, um pouco mais fortes.
— Ótimo, agora estraguei o livro! — Sentando-me rapidamente.
— Vá, não sejas dramática. Nem está a chover assim tanto. — Disse, sentando-se também.
Foi então que o céu se abriu. Como se alguém tivesse virado um balde gigante, a chuva começou a cair de repente, grossa e pesada. Soltei um grito e tentei levantar-me depressa, enquanto o Paulo ficou ali sentado, a rir.
— Estás à espera de quê?! Anda, temos que nos abrigar! — Gritei por cima da chuva.
Ele levantou-se devagar, já completamente encharcado.
— Para quê? Já estamos molhados!
Abriu os braços, deixando a água escorrer pelo rosto, enquanto eu olhava, incrédula.
— És impossível… — Sorri
Pegou-me pela mão e puxou-me para a chuva.
— Anda, já que estamos nisto, pelo menos aproveitamos.
A chuva caía sem piedade, encharcando as nossas roupas e deixando o cabelo colado à pele. Eu tentei afastar a franja molhada do rosto, mas não consegui conter o riso ao ver o Paulo de braços abertos, rodopiando como uma criança em dia de trovoada.
— Vais apanhar uma constipação, idiota!
Ele a rir, aproxima-se de mim.
— Vale a pena se for assim!
Num impulso, agarrou-me pela cintura e girou-me no ar. Soltei um grito misturado com uma gargalhada, as minhas mãos apertam-lhe os ombros para não escorregar. Quando os meus pés tocaram novamente o chão encharcado, ficamos frente a frente, tão próximos que o som da chuva pareceu abafar-se por um momento.
— Nunca pensaste que uma tempestade podia ser assim divertida?
Mordi o lábio, para tentar não sorrir demais.
— Talvez com a pessoa certa.
— Sabes que, tecnicamente, podíamos correr para dentro da caravana e secar-nos…
— Ou podíamos ficar mais um bocadinho. — Disse desafiando-o.
Ele não respondeu com palavras. Em vez disso, inclinou-me e beijou-me, um beijo quente, em contraste com as gotas frias que escorriam pelo nosso rosto. Respondi ao beijo sem hesitar, os meus dedos entrelaçaram-se nos cabelos molhados dele enquanto a chuva continuava a cair.
Quando finalmente nos afastamos, estávamos sem fôlego e riamos como se a tempestade fosse a menor das preocupações.
— Ok… Agora sim, acho que merecemos um cobertor seco.
— E um chá quente, antes que te transforme num pinguim. — Agarrei-lhe na mão e puxei-o.
De mãos dadas, corremos em direção à caravana, deixando para trás a manta ensopada e o livro, como testemunhas silenciosas.
Já de noite, na caravana, iluminada apenas pela luz suave de uma lanterna, ganha uma atmosfera acolhedora e tranquila. Dentro, o cheiro de comida caseira mistura-se com a brisa fresca que entra pelas janelas abertas.
Estávamos na pequena cozinha, onde o espaço é apertado, mas a cumplicidade torna tudo perfeito. O som de uma música suave, toca baixinho ao fundo, criando uma sensação de conforto e intimidade.
Eu mexia na frigideira enquanto o Paulo cortava os legumes, a sorrir para mim.
— Adoro estes momentos. É simples, mas é tudo o que precisamos, não é?
Ele com um olhar tranquilo e sereno, colocava os pedaços de tomate na frigideira.
— Sim... Não é preciso mais do que isto. A comida, a música, a tua companhia. Acho que estamos a construir um bom pedaço de felicidade aqui.
— Às vezes as melhores memórias são feitas de coisas simples como esta.
Ele pousou a faca de lado, olhou para mim e estendeu-me a mão.
— Queres dançar? Mesmo sem espaço, podemos tentar.
— Claro, porque não? Não precisamos de mais do que os nossos pés descalços e música para dançar.
E ali, no pequeno espaço da cozinha da caravana, descalços, começamos a dançar suavemente. Os pés deslizavam pelo chão de madeira, enquanto os nossos corpos moviam-se ao ritmo da música. Não havia pressa, os risos suaves.
— Este é o melhor lugar para estar... com a pessoa certa, não achas?
Respirei fundo, sentindo o cheiro do seu cabelo e o calor do abraço dele.
— Sim... está perfeito.
O tempo parece desacelerar, e, sem palavras, a cumplicidade cresce. Continuamos a dançar, agora mais próximos, até que o som da música se mistura com o som das nossas respirações. Quando o silêncio chega, não é desconfortável, mas sim cheio de promessas.
Finalmente, depois de algum tempo, sem pressa de nada, o momento transforma-se em algo mais íntimo. A noite lá fora está estrelada, o céu limpo, e a caravana é o nosso refúgio perfeito.
Com um toque suave, as roupas caem e, juntos, deitados, a noite é nossa. A suavidade das carícias, a paixão nas mãos dele, são a combinação perfeita para o amor.
Deitada no peito dele, os dedos traçavam pequenas linhas imaginárias na sua pele, enquanto o som da respiração se mistura com o som distante da natureza.
De repente, o meu pensamento torna-se mais inquieto. Interrompo a calma do momento com uma pergunta que paira no ar.
— Paulo... achas que vamos ser descobertos?
Ele, tocava suavemente nos meus cabelos e beijou-me a testa, tentando manter a calma no tom de voz.
— Descobertos? O que queres dizer?
Levantei ligeiramente a cabeça e olhei para ele, com uma expressão de dúvida nos olhos.
— Vi umas notícias... O governo começou a falar de planos de desconfinamento. As empresas vão começar a chamar os funcionários de volta, a polícia vai aumentar as fiscalizações... será que o nosso refúgio vai acabar?
Silêncio.
O vento lá fora agita as folhas das árvores, mas ali dentro, as minhas palavras pareciam flutuar no ar pesado. O Paulo sentiu a tensão crescer, e olhou para mim, um pouco mais sério, mas ainda a tentar acalmar a mente inquieta.
Suspirou suavemente, e abraçou-me com mais força.
— Eu sei. Eu também ouvi as notícias. O mundo está a mudar, mas... aqui, neste momento, podemos controlar o que acontece entre nós. Não precisamos de ter todas as respostas agora.
— E se nos encontrarem? E se tudo mudar, e tivermos que voltar a... a correr, a esconder-nos? O que vai ser de nós?
Passou uma mão pela minha coluna, a tentar transmitir-me algum conforto, mesmo que o futuro parece-se incerto.
— Olha para nós, Laura. Olha para este momento. Não temos todas as certezas, e o mundo está um caos, sim... mas, enquanto estivermos juntos, temos algo muito maior que qualquer medo. Temos o agora, e isso... isso é tudo o que podemos controlar.
Fiquei em silêncio, refletindo as palavras dele. Senti o calor do seu corpo, o conforto do momento, mas a incerteza ainda me pesa o coração. Temo que, mais cedo ou mais tarde, a paz que encontrei ali com ele possa ser interrompida.
— Eu só... não quero que acabe. Não quero que nos obriguem a deixar tudo para trás.
— Não vamos deixar nada para trás. O que temos, o que estamos a viver, isso não se pode roubar. Mesmo que o mundo mude, nós, aqui dentro, escolhemos o que fazemos. Vamos aproveitar, enquanto podemos.
Fechei os olhos, aconchegando-me mais junto a ele, ainda com as perguntas a pairar na mente, mas a confiança dele deu-me um pouco de alívio. Sei que, por agora, enquanto estiver ali, na segurança dos seus braços, o futuro não importa tanto quanto o presente.
Finalmente, ele quebrou o silêncio, com uma voz mais grave, como se estivesse a ponderar em voz alta.
— Mas sabes que, mais cedo ou mais tarde, vamos ter de voltar, não sabes?
Ergui os olhos, as palavras dele eram uma constatação fria da realidade que, apesar de tudo, ambos sabemos que vai chegar.
— Voltar? Mas... não podemos continuar aqui? Não podemos simplesmente ignorar o mundo?
Ele girou na minha direção, com os olhos fixos nos meus, mais sérios agora.
— Eu queria que fosse assim, Laura. Mas a verdade é que não podemos ficar para sempre à margem, a viver num sonho... mais cedo ou mais tarde, as coisas vão cobrar-se.
Mordo o lábio inferior, e sinto a dureza daquilo que ele diz, mas sei que, no fundo, ele está certo.
— Eu sei… Só queria que pudéssemos ficar aqui, sem nos preocuparmos com o que está a acontecer. Mas, como dizes, não podemos fugir para sempre.
— Não podemos. A vida chama-nos de volta, embora este momento seja perfeito. Às vezes, é preciso enfrentar o que está fora, não podemos esconder-nos aqui eternamente.
— Eu sei... Eu só... não quero que tudo acabe. Não quero perder o que estamos a viver. — Disse triste.
— Eu também não. Eu também não. Mas, seja o que for que o futuro nos reserve, nós vamos atravessá-lo juntos. Não importa o que venha depois, temos o agora, e isso, por enquanto, é tudo o que importa.
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