Manhã de sol. Não estava frio, mas também não estava calor. Atravessei a ponte para casa dos meus pais, na margem sul. Chegou finalmente o dia para o qual a minha mãe me ligava, a toda a hora. O almoço de família, marcado há meses.
— Olá malta, cheguei!!
— Oh minha filha!! — Apareceu o meu pai que me deu um forte abraço.
— Olá pai, como estás?
— Sabes, só ainda não estou louco graças ao tempo que passo na rua!!
— Ai pai, lá estás tu com o drama.
— Drama?! Isso é a secção da tua mãe!
Afastei-me para cumprimentar o resto da família.
— Então? — Disse ao meu irmão.
— Então? Vieste sozinha? — Perguntou ele já com o seu tom de gozo, adorava provocar-me.
— Estavas à espera que viesse com alguém?
— A mãe é que disse, que talvez viesses acompanhada. — Comentou indiferente.
— Pois… o que vale que já conhecemos a peça!
Dirigi-me à cozinha onde tentei arranjar alguma coisa para me ocupar e um copo de vinho. Era um ótimo truque para não ter de andar a fazer conversa. Agarrei-me a uma pilha de louça que já estava por lavar, e ali fiquei a pensar na vida! Alguns minutos depois.
— Laura?! Já chegaste! Nem dei conta!! — Provocou a minha cunhada.
— Tudo bem, Xica? Não te vi em lado nenhum, até pensei que ainda não tivesses chegado.
— Estava no quarto da tua mãe a retocar a maquiagem. Estás mais magrinha, ou é impressão minha?! — A Francisca fazia sempre questão de falar no meu peso, deixava sempre esse tema sublinhado e presente em todos os encontros de família.
— Deve ser impressão tua, não tenho feito rigorosamente nada a esse nível. — Ainda só tinha chegado há uns 20 minutos e já estava farta de ali estar.
Fui até a varanda, mas não antes de pedir um cigarro ao meu tio.
— Então? Voltas-te a fumar? — Perguntou o tio Eduardo.
— Não Tio, está-me a apetecer. Olha, nem te sei dizer, deve ser o ambiente. Na realidade acho que vai bem com este copo de vinho.
— Estou a brincar, não precisas de te explicar. Toma lá.
Acendi o cigarro, com o isqueiro chique, o meu tio tinha uma coleção gigante de isqueiros do qual era orgulhoso. Olhei o horizonte e veio-me à cabeça o Fred. Que estaria ele a fazer? Não lhe tinha dito mais nada depois do dia que passamos juntos e ele também não. Passou quase uma semana desde a última vez. Tirei uma foto do copo de vinho e enviei a mensagem. “Lembrei-me de ti. Bj Laura”
— PARA A MESA, VAMOS ALMOÇAR!! — Gritou Diana, minha mãe, com os pulmões cheios de ar.
Começou a barafunda dos lugares, onde se senta quem… o pai mandou para o ar, a mãe deu ordens e até o tio Eduardo, deu a sua opinião.
O almoço estava ótimo, como sempre. O meu pai era um ótimo cozinheiro. Já na sobremesa, uma baba de camelo feita pela Xica no famoso robot de cozinha que ela sempre gabava. O meu irmão levantou-se e largou a bomba.
— A sério… Estás a gozar meu??!? — Levantei-me histérica.
— Sim, não, sim… vais ser tia! — Disse ele envergonhado.
— Opah parabéns a sério. Estou muito feliz por vocês. — Disse a abraçar os dois. — É sentido, estou mesmo feliz por futuramente ser tia.
Estão todos ao rubro pela primeira criança da família. Sentia-me a ficar para trás e com isto já sabia que iam começar os comentários sobre a minha vida amorosa. Mas cá estamos para os receber.
Enquanto todos celebravam e relembravam traquinices do meu irmão quando era pequeno, fugi até ao meu antigo quarto. Estava já tudo mudado, as mobílias eram as mesmas, mas contavam outra história que não era a minha. Completamente dominado pela colecção de bonecos da minha mãe. Ainda assim, havia ainda sinais meus, algumas fotos, alguns livros e no meio dos livros, ali perdido está um dos meus diários. Comecei a ter diários desde muito pequena, e o tema eram sempre os mesmos, o amor, o amor que sentia por outras pessoas. O ciúme. As paixões foram muitas e desde muito cedo. Sempre por pessoas mais velhas. A maioria delas, nunca deram em nada, e alguns rapazes sobre quem escrevia, não souberam da minha existência, quanto mais o meu amor por eles.
Regressei à sala e já só esperava que aquilo acabasse depressa. Fiquei com vontade de ir até à praia, dar uma caminhada, mas queria lá chegar ainda com a luz do dia, para não apanhar o frio do final de tarde.
Entretanto, vi uma abertura para fugir dali.
— Bem mãe vou andando, tenho ainda muita coisa para fazer em casa, tenho de ligar para alguns fornecedores, por causa de um projeto.
— Mas é sábado, vais trabalhar ao sábado? — Reparou na cara que fiz — Ok minha querida, espero que tenhas gostado do almoço, já sabes que a mãe e o pai nunca sabem o que cozinhar para ti.
— Estava tudo ok, não te preocupes. Beijinho, gosto muito de ti. Xau pai, gosto muito de ti. — Abraçei os dois e despedi-me do resto da família.
Entrei no carro, tirei o telemóvel para colocar a carregar na viagem e vi o sinal de mensagem recebida. “Podemos repetir! Desta vez com vinho! Às 22h!? Se estiveres disponível? A pensar em ti também. Bj Fred”. Sorri, é bom saber que alguém pensa em nós. Sem pensar muito respondo “Apanhas-me em casa?”, “Combinado” respondeu ele logo de seguida. Senti-me mesmo especial. Tinha realmente alguém a pensar em mim? Ou seria outra coisa qualquer?! Eu sentia a química entre nós, mas estaria eu a ser precipitada. Decidi arriscar.
Parei o carro perto da praia. Tirei os sapatos e desci em direção ao mar para molhar os pés. Que bem que sabe, mesmo estando gelada. Recuei e sentei-me ali mesmo. Enterrei os pés na areia para os aquecer. Deitei-me a olhar o céu, cinzento mas sem chuva. Adoro o som do mar. Morei em Lisboa mesmo num bairro típico do centro, onde no início do verão cheirava sempre a sardinha assada e as noites eram de alegria. Em pequena, lembro-me de fazer praia na linha com a minha mãe e as amigas dela. Só na altura da faculdade, quando conheci a Joana, é que decidi mudar para a linha. Estico os braços na areia húmida, de repente sinto-me só. Eu adoro estar sozinha, mas sabes quando parece que caímos na realidade nua e crua e ficamos triste com tudo. Que não estamos bem com nada. Que não vingaram na vida, que não temos ninguém a quem regressar ao final do dia. É o que dá beber vinho e não acabar a garrafa, pensei na altura. Olhei o relógio, coloquei um sorriso e forcei-me a pensar positivo e de que tudo iria ficar bem, decidi regressar. Tinha ainda algum tempo para me arranjar.
“Estou à tua espera.” recebi no telemóvel. Tinha adormecido no sofá a ver uma série, enquanto esperava pela hora. “A descer, dá-me 1 seg.” dei uns retoques finais e desci. Fui assim mesmo. Corri até à rua.
— Allo, como estás? — Perguntei, entrando no carro.
— Estou bem, e tu? — Perguntou-me também, com um abraço apertado e um beijo na cara.
— Melhor agora, adormeci, mas agora estou óptima. Onde vamos? Sempre vamos tomar vinho? — perguntei curiosa — Caia bem depois do dia que tive.
— Queres falar sobre isso?
— Nem por isso. Talvez depois de alguns copos!
— Não vamos longe, conheço o sítio perfeito.
— Boa, vamos então?
Entrámos numa garagem. Subimos de elevador até ao último andar.
— Força, primeiro as senhoras! — Fez-me sinal e entrou logo de seguida quase encostado a mim. Conseguia sentir a respiração — Bem-vinda — Sussurrou-me ao ouvido.
Atrapalhada tentei fugir da situação.
— Onde estamos? É o teu apartamento? O da vista?
— Sim, vem aqui! — Pegou na minha mão e levou-me em direção à varanda.
Enquanto tudo acontecia, eu examinei cada cantinho, cada pormenor por onde passamos. Era um apartamento simples, mas tudo milimetricamente arrumado. Parecia que tinha acabado de entrar num apartamento daqueles que só vemos em revista.
— Fred, que vista maravilhosa, isto é lindo — Enquanto espreitei todos os ângulos com um sorriso no rosto — Tu tens noção disso, certo?
— Humm humm…
Sei que não era comum ele receber pessoas, tínhamos falado sobre o assunto no dia do almoço. Há muito tempo que não estava com ninguém. Anos. Para ter vontade de me trazer ali, estaria certo do que sentia, apesar de nos conhecermos há tão pouco tempo. Será?! Fiquei ainda mais nervosa.
— Vou lá dentro buscar o vinho.
— Okay, vou contigo?!
— Deixa-te estar. Estás bem onde estás. Aprecia!! — Piscou-me o olho.
Sentei-me numa das cadeiras que ali estavam e tapei-me com uma das mantas. Ele serviu o vinho na cozinha, e quando regressava para me dar um dos copos, tropeçou e entornou tudo sobre o meu vestido.
— Oh meu deus, que desastrado, desculpa! Começo bem!
— Não faz mal, acontece.
— Eu até já andava desconfiado, como é que ainda não tinha feito disparates.
— Fred, por favor, relaxa, está tudo bem, é apenas vinho, não vou morrer afogada!! Diz-me só onde fica a casa-de-banho para eu tirar já a mancha, senão vai ficar marcado. Mas tenho de te dizer uma coisa — Tentei ficar séria — Que desperdício de vinho — Rimo-nos.
— Eu levo-te, dou-te umas roupas limpas, enquanto pomos essas a lavar e secar.
— Não é preciso, eu depois lavo em casa, não há necessidade de perder tempo com isso, não te quero dar trabalho.
— Por favor, é o mínimo que posso fazer depois do disparate. Para além de que o temos mais é tempo.
— Okay, okay, pronto se ficas feliz.
Ao fim de alguns minutos, regressei à sala. Ele continuava na varanda a tomar vinho e a apreciar a vista do qual nunca se cansava.
— Desculpa Fred, aproveitei para tomar um duche, só me vinha o cheiro de vinho e acabei por demorar.
Tinha vestido os calções de algodão cinza e a t-shirt branca que ele me tinha deixado em cima da cama.
— Não tudo bem, fizeste bem… Estás confortável?
— Melhor, sim, obrigada. Só me falta o vinho!
Ele sorriu, encheu outro copo e desta vez conseguiu dar-me sem acidentes.
— Merda, como és linda!!
— Desculpa?
— Hmm? Desculpa? hmm? Não? Pensei em voz alta?? — Disse atrapalhado.
— Hmm... hmm… — Confirmo.
— Desculpa. Mas é verdade. És linda!! Já te disseram de certeza! Estou só a ser cliché!
— Bem, sim, já o disseram, mas a frase acaba sempre de outra forma. Não é que eu ligue, não me interessa minimamente o que os outros pensam. Mas acaba sempre com referência ao meu peso. Mas obrigado!!
— Sobre o teu peso? O que tem? Estás óptima!
— Sei, estou um pouco fora de forma, eu percebo, e não precisas ser simpático em relação a isso. Sinto-me bem, é o que me interessa, mas já chateia as frases “és linda, MAS… se perdesses peso ficavas ainda melhor” é desgastante.
— Acho que fazes muito bem, bloquear os comentários menos agradáveis. Mas não é essa a minha intenção. Não me interpretes mal.
Afastei-me e mais uma vez mudo de assunto.
— Como estão a correr as montagens na Barbearia?
— Está tudo a correr bem, como previsto. Tudo nos timings certos.
— Óptimo. Espero o convite de abertura.
— Laura, por favor. Não precisas… o espaço também é teu. Podes ir quando quiseres — Disse enquanto caminhava na minha direção!
— Fred, pára!! Assim não te consigo levar a sério.
— Desculpa, não consigo evitar… é mais forte que eu!! E ver-te nessa t-shirt, está a deixar-me maluco. Desculpa.
— Percebo! Mas, não estou à procura de ninguém de momento. Tenho imenso trabalho, imensas coisas em que pensar e pouco tempo para "isto".
Ele tentou novamente aproximar-se.
— É assim tão difícil de aceitares que alguém se possa interessar por ti?
— Não... mas...
Ele passou por trás de mim e senti-o cheirar-me.
— Ninguém falou em relações. Há quanto tempo?
— Uns 3, 4 anos.
— Vem comigo - pegou-me novamente na mão.
Percorremos a casa, entramos no quarto e fomos à janela que dá para o outro lado do prédio…
— Consegues ver? — Perguntou-me.
— O quê?? — Disse perdida.
— Ali… — Apontou — A tua torre… daqui conseguimos ver a tua torre!!
— Ah, é verdade. Realmente tens uma vista 360. De manhã quase conseguimos acenar um ao outro - disse divertida.
Ele aproximou-se por trás, abraçou-me pela cintura e sussurrou-me ao ouvido:
— Porque não?! — Voltou a questionar-me.
O cheiro. Afastei-me devagar, virei-me. Ficámos frente a frente. Senti a respiração dele a percorrer-me a face, até os nossos olhos se encontrarem.
— O teu cheiro — Consegui dizer.
— O quê? — Disse atrapalhado, cheirando os sovacos — Cheiro mal? Não me digas?
— Não… Parvo… adoro o teu cheiro… — Disse às gargalhadas. — Adoro quando me olhas nos olhos.
Engoli a saliva que não tinha. Ele desviou o meu cabelo, ganhou coragem e beijou-me.
Um beijo calmo e sentido. A língua dele estava quente e senti o sabor do vinho. Mas decidi afastar-me.
— Vives aqui há quanto tempo?
— Porquê? - disse ele sem perceber o que acabou de acontecer e já um pouco irritado.
— Não sei, o prédio não me parece ser assim tão antigo!
— Não… porque não me deixas?
— Fred, por favor, acabámos de nos conhecer!
— Ainda assim sinto que te conheço há tempo suficiente.
— Só acho que podemos ir devagar, não concordas?
— Muito bem… vamos devagar então - deu-me um sorriso mordendo o lábio - Não acredito que vou ceder. Não estou habituado a ser afastado. Gosto muito de ter o que quero. Mas enfim! Respeito a tua decisão. Queres ver um filme?
— Eu faço pipocas e caminhei para a cozinha.
— Falaram-me num filme que saiu agora, acho que vais gostar.
Tínhamos já reunido tudo o que precisávamos para a noite ser devagar. Uma manta, pipocas salgadas e uma garrafa de vinho. Encostei-me no ombro dele e respirei fundo. A vontade de estar ali com ele é definitivamente alta e as borboletas que sentia na barriga só de ele me tocar, deixavam-me cheia de tesão. Mas magoei-me e deixei magoarem-me vezes demais e queria que fosse diferente. Quem me diz que não seria para ele um troféu?! Não o conheço há tempo suficiente, quem me diz que ele não faz isto com todas as miúdas que conhece?! Tantas perguntas e nenhuma resposta.
Ele carregou no Play. Íamos comentando o filme à medida que avançava, mas ao final de 30 minutos adormeci… Acordei com ele a pegar-me ao colo e a dirigir-se ao quarto. Acariciou-me a bochecha, ajeitou-me o cabelo.
Eu voltei a dormir.
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