Sexta | 10 de Abril de 2020




O meu coração batia como um tambor no peito. A adrenalina corria-me nas veias, misturada com um nervosismo elétrico. O dia arrastou-se como um teste à minha paciência, mas agora, finalmente, a espera tinha acabado.

Passava da meia-noite. As ruas estavam desertas, como se o mundo inteiro tivesse congelado. Ajustei a alça da mochila ao ombro e peguei no telemóvel.

“Estou cá em baixo."

Respirei fundo. Era agora.

Sai do apartamento num misto de ansiedade e excitação. O prédio estava em silêncio, cada passo que dava ecoava no corredor vazio. Quando as portas do elevador se abriram, o ar frio da madrugada fez-me arrepiar a pele.

E então vi-o.

Encostado à caravana, de capuz puxado sobre a cabeça, o Paulo estava á minha espera. Mas, assim que os nossos olhos se encontraram, não houve hesitação.

Larguei a mochila no chão e corri até ele.

Ele abriu os braços no instante exato em me lancei contra o seu peito, e o impacto quase o fez perder o equilíbrio. Um suspiro escapou-lhe dos lábios antes que a minha boca encontrasse a sua num beijo desesperado, faminto, cheio de saudade e necessidade.

As mãos dele apertaram-me a cintura, puxando-me para si, como se tentasse recuperar todo o tempo perdido. Eu agarrei-lhe os ombros, os dedos enterrando-se no tecido do casaco, como se estivesse com medo que ele desaparecesse.

Meu Deus, eu estava a enlouquecer sem ti! — Murmurou ele, com a testa colada à minha.

Sorri, e os meus olhos brilharam.

Então, agora vais ter que me aturar a tempo inteiro.

Ele riu, um riso aliviado e quente, antes de me beijar novamente, desta vez mais lento, mais intenso, como se estivesse a gravar o momento na memória.

Quando finalmente nos afastámos, ele pegou na minha mochila e abriu a porta da caravana.

Anda, vamos sair daqui antes que mudes de ideias.

Subi para o banco do passageiro enquanto ele ligava o motor. A cidade ficou para trás, e a escuridão da estrada abriu-se à nossa frente.

Naquele instante, com a mão dele pousada na minha, soube que não havia como voltar atrás.

Estávamos juntos. Finalmente.

E a aventura estava apenas a começar.

A caravana cortava o silêncio da madrugada, avançando pela estrada deserta. Eu estava encostada ao vidro, olhando para as luzes da cidade que ficavam para trás. Sentia-me leve, livre… mas o coração ainda batia acelerado.

O Paulo conduzia com as mãos firmes ao volante, mas eu conseguia ver o brilho de excitação nos seus olhos. De vez em quando, olhava para mim de soslaio e sorria.

Nem acredito que estamos a fazer isto. — Murmurei.

Acredita, baby. Já estamos a caminho.

Sorri, sentindo um arrepio percorrer-me a pele. Mas, à medida que nos afastávamos, a adrenalina começava a dar lugar à realidade.

Foi então que vimos algo na estrada.

Merda. — A voz do Paulo endureceu, e eu segui o seu olhar.

A poucos metros, uma barreira policial bloqueava a estrada. Dois carros patrulha, um grupo de agentes, luzes a piscar na escuridão.

O meu peito parou.

E agora?

Ele respirou fundo, mantendo a calma.

Vamos improvisar.

Diminuímos a velocidade até a caravana parar junto aos agentes. Um polícia aproximou-se, e apontou a lanterna para o Paulo.

Boa noite. Para onde vão a esta hora?

O Paulo forçou um sorriso relaxado.

Boa noite, Sr. Agente. Somos um casal, estamos a caminho de casa dos meus pais. A minha mãe está sozinha, com problemas de saúde. Fiquei preocupado, por isso decidimos ir ter com ela.

Mordi o lábio, tentando não demonstrar que estava nervosa. O polícia franziu a testa.

Têm o comprovativo de deslocação?

O Paulo fingiu hesitação, e depois deu um pequeno suspiro.

Não… foi tudo tão repentino… eu só queria garantir que ela está bem.

O Agente trocou um olhar com o colega. Eu sentia o pulso latejar. Estava a resultar?

O polícia olhou para mim, e imediatamente fiz a minha melhor cara de preocupação.

A sério, Sr. Agente. A mãe dele precisa de nós. O senhor também tem família, não tem?

O homem hesitou, como se ponderasse. Depois, suspirou.

Sigam com cuidado.

Quase gritei de alívio, mas contive-me.

Muito obrigada, Sr. Agente!

O Paulo acenou e arrancou devagar. Só quando estávamos longe da barreira, é que soltamos uma gargalhada.

— Jesus, que adrenalina!

Ri-me, mas sentia as minhas pernas a tremer.

Se isto foi o começo da viagem, nem quero imaginar o resto!

Ele lançou-me um olhar divertido.

Aventura é conosco, baby.

A caravana deslizava pela estrada escura, engolida pela imensidão da noite. O rádio tocava baixinho, preenchendo o silêncio confortável entre nós.

Já tínhamos deixado as luzes da cidade bem para trás. Agora, só havia estrada, árvores e escuridão.

Nunca me soube tão bem quebrar as regras, — Murmurei, com um sorriso preguiçoso, encostando novamente a cabeça ao vidro.

Diz-me que não valeu a pena! — Apertou-me ligeiramente a coxa, e lançou-me um olhar cúmplice.

Valeu… — Admiti, mordendo o lábio. — E muito.

Mas o momento de descontração foi interrompido por um som estranho.

Poc-poc-poc…

A caravana engasgou-se. O Paulo franziu a testa e olhou para o painel.

Não, não, não… — Murmurou, batendo com os dedos no volante.

O que foi? — Perguntei, endireitando-me.

Ficámos sem gasolina.

O motor tossiu uma última vez antes de morrer por completo. O silêncio que se seguiu foi ensurdecedor.

A sério, Paulo?

Ele soltou um suspiro e encostou a cabeça ao volante.

Eu juro que achava que ainda dava para mais uns quilómetros…

Olhei em volta. Estávamos no meio do nada. Estrada vazia, floresta densa dos dois lados. Nenhuma luz ao longe.

E agora? Tens um plano B, génio?

O Paulo sorriu de lado, aquele sorriso malandro que fazia o meu coração acelerar.

Claro que sim. Vou buscar gasolina.

E onde, exatamente? Não sei se reparaste, mas estamos no meio de um filme de terror!

Ele puxou o telemóvel e abriu o GPS.

Há uma bomba de gasolina a uns dois quilómetros daqui. Não é assim tão longe.

Bufei.

Ótimo. E como é que trazes a gasolina para a caravana? Num balde?

Piscou-me o olho.

Por isso mesmo é que preciso de uma ajudante.

Estás a sugerir que eu vá contigo?

Tens uma ideia melhor?

Olhei em volta novamente. Ficar ali sozinha, no meio do escuro, não me parecia uma opção muito melhor.

Merda. — Peguei no casaco e suspirei. — Vamos lá antes que me arrependa.

Ele sorriu, pegou numa lanterna e saímos da caravana.

A estrada à noite parecia ainda mais sinistra. O som dos nossos passos ecoavam no asfalto, e a floresta ao lado ganhava vida com pequenos ruídos suspeitos.

Se um psicopata aparecer, a culpa é tua! — Resmunguei.

O Paulo riu.

Relaxa, amor. É só um passeio romântico… no escuro… no meio do nada.

O silêncio da estrada era cortado apenas pelo som ritmado dos nossos passos no asfalto. A lanterna nas mãos dele iluminava o caminho à frente, lançando sombras tremeluzentes nas árvores que nos rodeavam.

Eu abraçava-me ao casaco, tentando ignorar o arrepio que me subia pela espinha. Não era medo—bem, talvez um bocadinho — mas acima de tudo, sentia-me vulnerável no meio daquela imensidão escura.

Devíamos ter trazido um carro de apoio. — Resmunguei novamente.

A ideia era fugir discretamente, lembras-te?

Abriu a boca para responder, mas fui interrompida por um trovão distante.

Os dois parámos, a olhar para o céu carregado de nuvens.

Merda… — Diz, passando a mão pelos cabelos. — Não me digas que vai chover agora.

A resposta veio segundos depois, quando os primeiros pingos começaram a cair, leves e frios contra a nossa pele.

Oh, fantástico. — Ironizei eu, apertando mais o casaco contra o corpo.

O que começou como uma chuva fina transformou-se, em segundos, numa tempestade intensa. A água caía sem piedade, encharcando-nos num piscar de olhos.

Corre! — Puxa-me pela mão, e começamos a correr pela estrada, rindo no meio da confusão.

Os meus cabelos estavam colados ao rosto, a roupa agarrada ao corpo, e o frio começava a instalar-se nos meus ossos. Mas quando olhei para o Paulo, vi-o com aquele sorriso malandro, completamente encharcado, e não consegui evitar rir.

Aposto que isto não estava nos teus planos de fuga perfeitos!

Ele abanou a cabeça, rindo.

— Talvez não, mas olha que eu gosto de surpresas!

De repente, parámos. A chuva caía forte à nossa volta, e ali, no meio da estrada deserta, tudo parecia mais intenso.

Ele olhou para mim com uma intensidade que fez o meu estômago dar uma volta completa.

Sabes o que é mais louco? — Murmurou, aproximando-se.

Levantei o olhar, com os lábios entreabertos.

O quê?

Ele passou os dedos molhados pelo meu rosto, afastando uma mecha de cabelo, e depois deslizou a mão para a minha nuca, puxando-me para perto.

Eu fugiria mil vezes só para poder estar contigo assim.

O meu coração disparou. Nem tive tempo para responder — Ele já estava a beijar-me.

Foi um beijo urgente, faminto, como se ambos estivéssemos a compensar todo o tempo separados. As roupas encharcadas, os corpos colados, o calor das bocas em contraste com o frio da tempestade.

Agarrei-me à camisa dele, sentindo o desejo crescer entre os dois.

A chuva continuava a cair sem piedade, mas naquele momento, nada mais importava.

Temos mesmo de ir buscar gasolina? — Sussurrei contra os lábios dele.

Ele riu, encostando a testa à minha.

Acho que temos, se não quisermos dormir aqui no meio da estrada.

Suspirei, ainda a recuperar do momento.

Então anda… mas anda depressa, porque se me voltas a beijar assim, eu já não saio daqui.

Ele sorriu e puxou-me pela mão.

Quando finalmente avistámos a luz ténue da bomba de gasolina ao fundo da estrada, soltei um suspiro de alívio.

Aleluia! — Exclamei, apertando mais o casaco molhado contra o corpo.

Os meus pés estavam encharcados, os meus cabelos pingavam, e o frio começava a ser insuportável.

Mas, assim que chegámos à porta de vidro da loja de conveniência, o alívio transformou-se em frustração.

Estás a brincar comigo... — Murmurei eu, lendo o letreiro pendurado na porta.

"Encerrado. Abrimos às 6h."

Paulo passou as mãos molhadas pelo rosto, suspirando fundo.

Só pode ser karma.

Encostei a testa ao vidro, sentindo a frieza do material na pele.

O que fazemos agora?

Ele olhou à volta. A única luz vinha dos postes altos da estação. A estrada estava completamente deserta, sem vivalma.

Esperamos.

Ri, sarcasticamente.

Esperamos onde? Deitados no chão molhado a ver as horas passar?

O Paulo espreitou à volta da loja e encontrou um pequeno alpendre ao lado do edifício, onde ficavam as bilhas de gás. Pelo menos tínhamos um abrigo.

Anda, pelo menos ficamos protegidos da chuva.

Corremos até ao pequeno espaço coberto e sentamo-nos no chão frio, encostados à parede da bomba de gasolina.

O silêncio tomou conta do ambiente, apenas interrompido pelo som da chuva a bater no telhado. Esfreguei os braços numa tentativa inútil de me aquecer.

Ele olhou para mim e sem dizer nada, tirou a própria camisola molhada e passou-a pelos meus braços.

Toma.

E tu?

Eu aguento.

Hesitei, mas acabei por aceitar. A camisola não ajudava muito com o frio, mas o gesto fez o meu peito aquecer de uma forma diferente.

Sabes. — Murmurei, encostando a cabeça no ombro dele, — Isto tem tudo para ser a pior noite de sempre. E ainda assim… não trocava por nada.

O Paulo sorriu e beijou-me a testa.

Eu também não.

E ficámos ali, abraçados, à espera de chegar a manhã.


Copyright © 2023 de Filipa Cipriano Todos os direitos reservados. Este blog ou qualquer parte dele não pode ser reproduzido ou usado de forma alguma sem autorização expressa, por escrito, do autor, exceto pelo uso de citações breves.


0 comments