Domingo | 8 de Março de 2020




O som da televisão preenchia a sala, mas eu quase não ouvia mais nada além das palavras-chave: casos aumentam, medidas de contenção, evitar aglomerações. O cenário estava a mudar depressa demais, e eu não sabia se estava preparada para o que vinha aí.

Peguei no telemóvel e liguei ao Paulo.

Viste as notícias? — Perguntei, sem rodeios.

Vi… — A voz dele estava calma, como sempre, mas eu conhecia-o bem demais para acreditar que ele não estava preocupado. — Mas já sabíamos que isto ia acontecer, não é?

Sim, mas uma coisa é saber, outra é ver isto a espalhar-se. As pessoas estão a entrar em pânico, Paulo. Hoje fui ao supermercado e já faltavam coisas nas prateleiras.

Estão a exagerar. Daqui a umas semanas já ninguém se lembra disto.

Suspirei. O Paulo sempre teve essa mania de minimizar tudo, como se o mundo nunca pudesse ruir à sua volta.

Espero que tenhas razão! — Respondi, sem muita convicção.

Tu estás bem?

— Estou. Só… cansada. E com vontade de sair de casa e respirar um bocado.

— Faz isso. Vai dar uma volta, limpa a cabeça. Mas sem exageros, Dona Drama.

Revirei os olhos, apesar do sorriso involuntário.

Até logo, Paulo.

— Até logo, Laura.

Desliguei e fiquei ali sentada no sofá, o olhar fixo na televisão sem realmente ver nada. Havia um aperto no peito, uma inquietação que eu não sabia explicar. Parecia que tudo estava a mudar num ritmo que eu não conseguia acompanhar.

A ideia de ficar ali, fechada entre quatro paredes, a consumir notícias sem parar, parecia sufocante. Eu precisava de ar, precisava de espaço.

Peguei nas chaves do carro e fui até à praia.

O caminho foi silencioso. Não pus música, não queria barulho, não queria distrações. Apenas o som do motor e os meus próprios pensamentos, que insistiam em repetir a mesma pergunta: Será que isto vai mesmo passar depressa?

Quando cheguei, o mar estava calmo, mas a brisa era fria e cortava-me a pele. Ainda assim, tirei os sapatos e caminhei na areia, sentindo a textura suave sob os pés. O céu estava pintado num laranja suave, como se o dia se despedisse devagar, sem pressa.

Fechei os olhos e inspirei profundamente. O cheiro a sal, a maresia, aquele aroma familiar que sempre me trouxe paz.

Sentei-me na areia, abraçando os joelhos, e fiquei ali a olhar para o horizonte.

O que me assustava não era apenas o vírus. Era a sensação de que a minha vida estava prestes a mudar sem eu ter qualquer controlo sobre isso. Eu sempre soube o que esperar do dia seguinte. Trabalho, amigos, jantares, encontros, planos. Mas agora… agora havia um "e se" a pairar sobre tudo.

E se tudo mudasse mesmo? E se fôssemos obrigados a parar? A fechar-nos em casa? A adiar tudo?

E se o mundo, de repente, desacelerasse?

Passei as mãos pelos braços, sentindo a pele arrepiada. Não sabia se era do vento frio ou da sensação estranha que me percorria o corpo.

Ali, por um momento, o medo parecia distante. Não havia números de casos confirmados, não havia supermercados vazios, não havia incerteza. Só eu, o mar e a imensidão de um horizonte que, por mais caótico que o mundo estivesse, continuava sempre ali.

O mar não se importava com pandemias. Ele simplesmente existia.

Talvez eu devesse aprender a fazer o mesmo.

Ainda com a cabeça cheia de pensamentos, entrei no carro e fechei a porta. O silêncio ali dentro contrastava com o som das ondas lá fora. Peguei no telemóvel para ligar o rádio, mas antes que pudesse tocar no ecrã, o visor acendeu-se com um nome que não via há semanas.

Joana.

O coração deu um salto.

Olá, desaparecida! — Atendi, tentando soar leve, mas sentindo um aperto no peito.

Eu é que sou a desaparecida? — A voz dela vinha carregada de culpa e saudade. — Eu sei, eu sei, tenho estado ausente… mas tinha de te ligar.

Ajeitei-me no banco, ligando o motor, mas sem pressa de sair dali.

Como estás? Como está tudo aí? — Perguntei, aliviada por finalmente ouvir a voz dela.

Estou bem, dentro do possível. Mas estou presa, Laura. Não me deixam voltar para Portugal. Desde que começou este caos do COVID, fecharam voos, puseram restrições, e agora só nos resta esperar. Aqui quase não há casos, mas também não há planos para nos deixarem sair tão cedo.

— Isso é uma loucura… — Murmurei, sentindo o peso da situação.

Eu sei. E estou farta de estar longe de tudo. Longe de ti… — Ela fez uma pausa. — Como estão as coisas contigo? Não tenho estado presente, e odeio isso.

Respirei fundo, sabendo que não valia a pena mentir ou minimizar as coisas.

Tens estado afastada, sim… mas eu entendo, Jo. Depois de tudo o que aconteceu… o assalto, o rapto… era normal precisares de um tempo para ti.

Ela suspirou do outro lado.

Sim… mas agora sinto que perdi tanto. Quero saber tudo. Como estão as coisas com o Fred?

Mordi o lábio.

Pois… sobre isso… já não estamos juntos.

O quê?! — A surpresa dela era óbvia. — Mas… como assim? Quando foi isso?

Há uns dias. As coisas simplesmente não estavam a dar certo. Eu precisava de algo mais, de algo diferente… tive de colocar um fim.

Houve um breve silêncio antes de ela perguntar, num tom que já denunciava curiosidade:

Então… mas há alguém novo?

Sorri ligeiramente, hesitando por um instante antes de responder:

Sim.

— Ai, meu Deus! Quem? — O entusiasmo na voz dela fez-me rir.

O Paulo.

O silêncio do outro lado durou tanto que achei que a chamada tinha caído.

Joana?

— Espera… espera… o “corredor”? O Paulo “corredor”? O Paulo cantor?

Soltei uma gargalhada.

Esse mesmo.

— Mas como é que isso aconteceu?!

Ajeitei-me no banco, sentindo um calor estranho no peito ao pensar nisso.

Na realidade, já acontece desde o concerto que fomos as duas, hahaha, foi algo que foi crescendo. Ele esteve sempre lá, fomos ficando cada vez mais próximos e… pronto. Agora estamos juntos.

A Joana riu-se do outro lado da linha.

Bem, nunca pensei que ia ouvir isto… mas, ao mesmo tempo, faz sentido.

— Talvez… — Murmurei, sorrindo.

E estás feliz?

A pergunta apanhou-me de surpresa.

Respirei fundo antes de responder, mas desta vez sem hesitação.

Sim. Estou.

— Então é isso que importa, Laura. Se estás feliz, é porque fizeste a escolha certa.

Sorri, sentindo o peso de tudo aquilo, mas também uma leveza inesperada.

E tu, Jo? Como está o Luís? Como estás tu?

— Estamos bem. Ele tem sido incrível, paciente… depois de tudo, eu precisava disto. De um recomeço.

Houve um momento de silêncio reconfortante entre nós, como se estivéssemos a absorver o quanto as nossas vidas tinham mudado.

Quando voltares, temos muito para pôr em dia — Disse-lhe.

Eu sei… e acredita que estou a contar os dias.

Despedimo-nos com promessas de falarmos mais vezes, e quando desliguei a chamada, senti-me diferente.

A saudade ainda estava ali, a incerteza sobre o futuro também, mas agora havia algo mais.

Havia a certeza de que, mesmo em tempos caóticos, algumas coisas, algumas pessoas, continuavam a ser o porto seguro.

E a Joana era uma delas.

Na cozinha, o som da música vinda da coluna portátil no balcão. O ritmo animado enchia o espaço, abafando completamente o silêncio da casa. Finalmente, um momento sem notícias, sem alertas no telemóvel, e sem o peso da incerteza.

Eu mexia os legumes na frigideira, deixando-os saltear levemente no azeite quente. O aroma do alho e das especiarias espalhava-se pelo ar, criando um contraste perfeito com a brisa leve que entrava pela janela entreaberta.

De jeans justos e uma t-shirt larga, mexia-me ao ritmo da música, e de vez em quando balançava as ancas, cantarolando trechos das letras que conhecia de cor.

Peguei num tomate maduro, cortei-o em fatias finas e sorri ao ver a cor vibrante que se juntava no prato. Adorava cozinhar assim, sem pressa, sem distrações negativas. Apenas eu, os meus pensamentos e a minha música, como se cada pequeno detalhe fosse uma pequena forma de me conectar comigo mesma.

Peguei num copo de vinho tinto e levei-o aos lábios, fechei os olhos por um breve segundo enquanto o sabor rico se espalhava pela minha boca.

Sim, isto sabia-me bem.

Depois de um dia cheio de emoções, aquela pequena refeição, aquele momento só meu, era exatamente o que precisava.

À noite, já deitada, o telemóvel vibrou.

"Se tudo mudar, só quero que saibas que te amo."

Li a mensagem e, sem perceber, um sorriso surgiu no meu rosto, mas junto dele veio um aperto no coração.

Respirei fundo e digitei a resposta com os dedos ligeiramente trêmulos:

"Eu também te amo. Sempre."

Fiquei a olhar para o ecrã, e o brilho suave da tela iluminava a escuridão do quarto. O mundo parecia incerto. Mas, esta noite, aquelas palavras eram o que mais me importava.


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