Sábado | 29 de Fevereiro de 2020




De manhã, o Paulo sugeriu que fugíssemos até à praia. Não era um dia quente, o tempo estava fresco, mas o convite em si parecia algo perfeito para o momento que queríamos partilhar. Sem hesitar, aceitei. Às vezes, as palavras eram desnecessárias; os gestos é que falavam por nós.

Caminhámos descalços na areia, sentindo a textura fria sob os nossos pés, mas isso não nos incomodava. Estávamos juntos, e isso era o suficiente. As ondas do mar quebravam suavemente ao fundo, criando uma melodia tranquila que acompanhava a nossa caminhada. Conversámos sobre sonhos, sobre coisas que nunca imaginávamos dizer, até mesmo medos que até então guardávamos bem no fundo. Era como se estivéssemos a descobrir um ao outro em camadas, a desvendar segredos que, de alguma forma, nos tornavam ainda mais próximos.

O vento cortante, típico da manhã à beira-mar, fez-me estremecer. Antes que eu tivesse tempo de me encolher, ele estava lá, puxando-me para mais perto de si, tirando o casaco e colocando-o sobre os meus ombros, envolvendo-me com o seu calor.

Quero que estejas sempre bem. — A sua voz, suave e cheia de cuidado, soou baixinho, mas foi como se cada palavra tivesse tocado no meu coração de forma profunda.

Olhei para ele, tentando encontrar palavras para expressar o que sentia, mas o que importava, naquele momento, era o silêncio confortável entre nós. Ele não precisava de mais palavras para mostrar o quanto me queria bem. Era nas pequenas ações que ele me dizia tudo.

Sentámo-nos juntos numa rocha, olhando para o horizonte onde o sol começava a se pôr. O céu estava pintado em tons de dourado e rosa, e a luz suave envolvia-nos num abraço. A beleza do momento parecia refletir exatamente o que sentíamos: uma calma serena, mas profunda, que se estendia por nós como uma promessa.

Abracei-me ao casaco dele, sentindo o seu cheiro ainda nele, e, sem pensar muito, apertei-lhe a mão, com uma força silenciosa, como se estivesse a tentar transmitir tudo o que as palavras não conseguiam. Os meus olhos se fixaram no horizonte, mas a verdade é que tudo o que eu via naquele momento estava ali, dentro dele.

Não sei bem como te explicar, mas contigo tudo faz sentido. — As palavras saíram de mim como uma confissão sincera, uma verdade que só ele poderia compreender.

Ele virou-se para mim, e no brilho dos seus olhos eu vi tudo o que eu também sentia: um desejo de proximidade, de estar ali, naquele instante, sem mais nada que precisássemos. Não disse uma palavra, apenas me olhou com aquela intensidade silenciosa que me derretia por dentro. E então, sem mais, ele inclinou-se em direção a mim, e os seus lábios tocaram os meus com uma suavidade que, de tão profunda, me fez perder o fôlego. O beijo foi lento, carregado de significado, como se ele quisesse memorizar cada segundo daquele momento, e eu queria o mesmo.

Aquele beijo, tão simples, mas tão cheio de tudo o que não dizia, fez o resto do mundo desaparecer. Só existíamos nós dois, ali na praia, com o sol a pôr-se ao nosso redor, e o vento a acariciar-nos como se também ele fosse cúmplice daquele momento. Quando nos separamos, a distância entre os nossos lábios foi a única coisa que mudou, mas o que sentíamos, a ligação silenciosa que tínhamos, permanecia intacta, mais forte do que nunca.

A brisa salgada ainda acariciava a minha pele, enquanto subia os poucos degraus até à porta de casa, com Paulo ao meu lado. A caminhada na praia tinha sido perfeita

Mas assim que levantei o olhar, o meu corpo ficou tenso.

O Fred estava ali.

Encostado ao carro, com as mãos nos bolsos do casaco, o olhar cravado em mim como se o tempo não tivesse passado.

O meu coração deu um salto violento.

O Paulo, parou. Sabia exatamente o que ele representava.

Houve um instante de silêncio, carregado de significados não ditos.

Fred endireitou-se, os olhos deslizaram rapidamente para o Paulo antes de voltarem a prender-se nos meus.

Pensei que talvez não quisesses falar comigo... então decidi não te dar escolha. — A voz dele era baixa, firme, mas tinha aquele tom levemente desafiador que me fazia prender a respiração.

Sentiu o Paulo mudar ligeiramente de posição ao meu lado. Não foi agressivo, nem tenso, mas havia algo na postura dele que dizia que estava atento.

O que é que queres, Fred? — Disse finalmente encontrando a minha voz, mas saiu mais hesitante do que queria.

Ele passou a língua pelos lábios antes de responder, como se estivesse a medir as palavras.

Preciso de te ver. A sós.

Paulo soltou um suspiro curto, cruzando os braços.

A Laura não precisa de nada disso. — Disse, sem alterar o tom de voz, mas com a firmeza de quem não ia sair dali sem garantir que eu estava bem.

Fred ignorou-o, mantendo os olhos em mim.

E tu? — A pergunta veio carregada de algo mais profundo.

Senti o peito apertar. Porque ele não estava só a perguntar se eu queria falar. Estava a perguntar se eu ainda sentia.

Respirei fundo, tentando ignorar o nó na garganta. Olhei para o Paulo, que me observava sem pressão, como se estivesse a dar-me o espaço para decidir.

E depois olhei para o Fred.

O passado.

O fogo.

Aquele olhar que parecia sempre puxar-me de volta, mesmo quando eu achava que já tinha seguido em frente.

O que faço agora?

Sentia o coração bater contra as costelas, como se o meu próprio corpo me estivesse a avisar de que aquele momento era uma encruzilhada.

Fred esperava. Paulo esperava. E eu...?

Engoli em seco, desviando o olhar de Fred por um instante para pousá-lo no Paulo. Ele não dizia nada, mas os olhos dele estavam cheios de compreensão. E era isso que me fazia hesitar ainda mais, porque, se o Paulo fosse um homem inseguro, se tentasse impedir, talvez fosse mais fácil escolher. Mas não. Ele confiava em mim. Ele deu-me espaço para decidir.

E isso tornava tudo ainda mais difícil.

Virei-me para o Fred, e senti o estômago revirar. Ele ainda estava ali, sólido, intenso, um furacão contido à minha frente. Havia algo nele que nunca desaparecia, algo que mexia comigo de um jeito que não queria admitir.

Fala. — Disse, com a voz mais firme.

O Fred não olhou para o Paulo, mas claramente escolheu ignorar a presença dele.

Não aqui. — Murmurou.

Então não falamos. — Cruzei os braços, tentando erguer as barreiras que sabia que Fred conseguia derrubar com um único olhar.

Fred suspirou, passou a mão pelos cabelos num gesto frustrado.

Laura, sabes tão bem quanto eu que há coisas que não se dizem à porta de casa.

Havia qualquer coisa nas palavras dele, na forma como as disse, que me fizeram estremecer. Um peso, uma urgência.

Hesitei. Podia simplesmente dizer-lhe que não. Que já não interessava. Que ele era passado.

Mas seria verdade?

Paulo, sempre atento, finalmente quebrou o silêncio.

Se quiseres falar com ele, eu espero lá dentro. — A sua voz era calma, mas carregada de um respeito que me fizeram sentir ainda mais dividida.

Fred olhou para Paulo pela primeira vez.

Que cavalheiro. — Murmurou com um meio sorriso, mas os olhos não tinham humor.

Soltei um suspiro cansado.

Cinco minutos, Fred.

O peito dele subiu e desceu com um suspiro, como se já esperasse que eu cedesse.

É tudo o que preciso.

Olhei para o Paulo, que apenas assentiu e entrou em casa, deixando-nos a sós.

O ar entre mim e o Fred ficou mais denso.

Fala. — Repeti, cruzando os braços numa tentativa inútil de me proteger.

Fred deu um passo à frente.

Diz-me para ir embora, e eu vou.

Franzi a testa.

O quê?

Ele inclinou ligeiramente a cabeça, os olhos a queimarem os meus.

Se me disseres, com toda a certeza, que já não sentes nada por mim... que estás feliz com ele e que eu sou só uma memória distante... eu viro costas agora e não te procuro mais.

O meu coração parou.

Porque responder a isto devia ser fácil.

Mas porquê, então, as palavras não me saíam?

O silêncio entre nós era sufocante. Sentia a garganta apertada, mas sabia que precisava de dizer aquilo, por mim, pelo Paulo e até pelo Fred.

Inspirei fundo e, finalmente, falei.

Tu sabes que nunca foste só uma memória distante, Fred. — A minha voz era firme, mas havia uma doçura que eu não conseguia esconder. — Foste importante. Ainda és. Mas o que estou a construir com o Paulo… é diferente. É algo que me faz sentir segura.

Fred desviou o olhar por um segundo, a mandíbula tensa.

Seguro. — Repetiu, como se provasse a palavra na boca e não gostasse do sabor.

Sim. Seguro. Coisa que tu nunca me deste.

Ele voltou a encarar-me, os olhos carregados de emoções que eu já conhecia demasiado bem.

Isso não é justo.

Inclinou ligeiramente a cabeça, e cruzei os braços.

Não?

Fred passou a mão pelos cabelos, um gesto frustrado que me era tão familiar que quase me fez sorrir.

Laura, eu… — Ele hesitou, como se as palavras lhe pesassem na língua. — Tu sabes que eu nunca fui bom nessas coisas. Nunca fui bom a dar nomes ao que sentia. Mas tu sabias. Sempre soubeste.

Senti um aperto no peito. Sim, eu sempre soube. Mas saber nunca foi suficiente.

Saber não chega, Fred. — Murmurei. — Eu quis tanto que chegasse. Esperei… E tu nunca me deste mais do que pedaços. Beijos roubados, noites intensas, promessas silenciosas que nunca chegavam a lado nenhum. E eu aceitei isso durante um tempo.

Fred suspirou, deu um passo atrás, como se cada palavra lhe pesasse mais do que queria admitir.

E agora é tarde demais. — Disse ele, quase num sussurro.

Sorri, mas havia tristeza no gesto.

Agora é diferente.

Ele ficou em silêncio por um momento, só a olhar para mim. Depois assentiu lentamente, como se estivesse a aceitar algo que não queria aceitar.

Espero que ele saiba a sorte que tem. — Disse, finalmente.

Senti o peito apertar, mas não respondi.

Fred deu mais um passo para trás, os olhos ainda presos aos meus, como se quisesse gravar-me na memória antes de se virar.

E então, sem mais palavras, virou-se e entrou no carro.

O motor ligou-se, o som preencheu o silêncio pesado da rua. E, num piscar de olhos, desapareceu.

Eu fiquei ali, imóvel, a sentir o coração ainda acelerado. Uma parte de mim queria chorar. A outra parte queria suspirar de alívio.

E uma parte mais pequena, mais teimosa… sabia que ele nunca sairia completamente de mim.

Mas, pela primeira vez, estava disposta a deixá-lo partir.

Entrei em casa devagar, como se precisasse de um instante para me reajustar. O peso da conversa ainda pairava sobre mim.

O Paulo estava na sala, sentado no sofá, com um copo de vinho pousado na mesa ao lado. Não parecia irritado, nem tenso. Mas os olhos dele, sempre tão atentos, seguiram-me assim que entrei.

Acabou? — Perguntou, sem rodeios.

Assenti, sentindo-me exausta.

Ele não perguntou o que o Fred tinha dito, nem o que eu tinha respondido. Em vez disso, apenas inclinou ligeiramente a cabeça, como se estivesse a avaliar-me, a tentar perceber o que ia dentro de mim.

Queres falar sobre isso?

Hesitei por um momento, mas depois suspirei e fui até ele. Sentei-me ao lado dele no sofá, e ele não se afastou, não me pressionou, apenas esperou.

Ele queria saber se eu já não sentia nada por ele. — Murmurei.

O Paulo não reagiu imediatamente. Pegou no copo de vinho, rodou-o entre os dedos e depois pousou-o novamente.

E o que disseste?

Olhei para ele, e tentei perceber o que se passava na sua cabeça. Mas, como sempre, era uma muralha calma. Não havia ciúme nos olhos dele, apenas curiosidade e talvez… um leve receio.

Respirei fundo.

Que ele sempre será especial para mim.

Paulo assentiu lentamente, como se já soubesse a resposta.

Mas que o que estamos a construir é diferente. — Continuei. — Mais seguro. Mais real. E que ele nunca quis assumir nada comigo, enquanto tu…

Parei.

Paulo ergueu uma sobrancelha.

Enquanto eu?

Mordi o lábio e, num impulso, deslizei para mais perto dele, pousando a cabeça no seu ombro.

Enquanto tu não me deixas a duvidar do que sou para ti.

Ele soltou um suspiro longo e passou um braço ao meu redor, puxando-me ainda mais para perto.

Achas que ele percebeu? — Murmurou contra o meu cabelo.

Fechei os olhos, permitindo-me relaxar finalmente nos braços dele.

Acho que sim.

O Paulo não disse mais nada. Apenas apertou-me contra ele, como se não precisasse de palavras para me mostrar que estava ali, que ficaria ali.

E, pela primeira vez, senti que o passado podia finalmente ficar para trás.


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