Sexta | 13 de Março de 2020




Esta manhã, as notícias pareciam mais pesadas do que nunca. A televisão, como uma presença constante, repetia as mesmas palavras: “As escolas vão fechar”, “As empresas devem começar o teletrabalho”, “Portugal está a preparar-se para um confinamento.” Cada frase parecia ecoar na minha mente, criava uma sensação de que o mundo estava a desmoronar-se à minha volta.

Estava sentada no sofá, a olhar fixamente para o ecrã, sem acreditar no que estava ouvir.

Não acredito que isto está mesmo a acontecer. — Disse, mais para mim mesma do que para Paulo.

Do outro lado da linha, ouço-o a respirar fundo.

Vamos ter de ficar em casa. Mas não deixamos que isso nos afaste, prometo. — Disse-me com uma convicção a tentar esconder a própria insegurança.

Senti uma mistura de alívio e apreensão. Ele estava ali, a prometer que nada nos afastaria, mas a verdade era que ambos sabíamos que o futuro, de alguma forma, estava a mudar para sempre. Não sabíamos o que viria a seguir, mas sabíamos que esse momento seria uma viragem, algo que definiria como iriamos enfrentar tudo.

Larguei o comando da televisão com um suspiro pesado, agarrei no telemóvel e procurei o contacto da minha mãe. Precisava de ouvir a voz dela, saber como estavam todos.

O telefone tocou algumas vezes antes de atender.

Olá, filha! — A voz da minha mãe soou acolhedora, mas havia um peso por trás.

Olá, mãe… como estás? Como estão todos aí?

Vamos andando… Acompanhaste as notícias hoje?

Sim… e fiquei preocupada. As coisas estão a ficar cada vez mais sérias.

Pois estão. O teu pai e o teu tio dizem que é exagero, que já passámos por coisas piores, mas eu não sei… Nunca vi nada assim. As pessoas estão todas a falar disto, e já ouvi dizer que vamos ter que ficar mesmo em casa durante semanas.

Passei a mão pelo cabelo, tentando controlar a inquietação.

E o mano? Já falaram com ele? E a Francisca?

— Sim, ele diz que estão bem, mas claro que estão preocupados. Com a gravidez, é tudo mais complicado. Dizem que grávidas não correm muitos riscos, mas quem é que sabe, filha? Isto é tudo tão novo…

Mordi o lábio, sentindo a preocupação da minha mãe como se fosse minha.

Tens razão… é tudo uma incerteza. Mas e tu? Tens saído muito?

— Só para o essencial, mas olha que já não é fácil. Os supermercados estão uma confusão, filha, nunca vi nada assim. As pessoas a levarem tudo, parece o fim do mundo. E tu, tens-te protegido?

Sim, mãe. Estou a tentar levar isto a sério, mas sem entrar em pânico.

Ela suspirou do outro lado da linha.

Só quero que fiques bem, Laura. Isso é o mais importante.

— E eu só quero que fiquem bem também… Qualquer coisa, liga-me, está bem?

— Claro, minha filha. E tu faz o mesmo.

Despedi-me com um nó na garganta. Quando desliguei, fiquei ali, sentada no sofá, a olhar para o ecrã da televisão sem realmente ver nada.

A verdade era que, por mais que tentássemos tranquilizar-nos uns aos outros, ninguém sabia o que ia acontecer.

E isso era o mais assustador.

À noite, quando o sol já se tinha posto e as ruas estavam vazias, o Paulo ligou-me. Decidimos passar a noite em videochamada. Ambos sabíamos que, a partir daquele momento, tudo seria diferente. O que antes parecia ser uma parte normal do dia — encontros, jantares, passeios — agora estava a ser substituído por esta nova forma de estarmos juntos, a distância entre nós alargava-se como nunca.

Olá, bonita — Disse ele, com um sorriso cansado, com a câmara a tremer ligeiramente antes de a estabilizar.

Sorri, e senti o calor daquela simples saudação. Ele estava sentado no sofá, com um hoodie cinzento e o cabelo meio despenteado, como se tivesse passado as mãos pelos fios uma centena de vezes ao longo do dia.

Olá, “corredor” — Provoquei, mordendo o lábio.

Como estás? — Perguntou ele, a olhar fixamente para mim, como se realmente quisesse saber a resposta.

Suspirei, e ajeitei-me na almofada.

Não sei… acho que estou a tentar não enlouquecer com tudo isto. Liguei à minha mãe há pouco. Estão todos preocupados, mas a tentar manter a calma.

Ele assentiu lentamente.

Sim… é difícil. Está tudo a mudar tão rápido. E eu odeio não saber o que vai acontecer.

Estudei o rosto dele pelo ecrã. Havia algo ali, algo na forma como ele olhava para mim, algo na maneira como passava a língua pelos lábios antes de falar.

Paulo… — Comecei, sem saber bem como continuar.

Ele inclinou-se um pouco mais para a câmara.

Diz, Laura.

Mordi o lábio, hesitante, antes de soltar num sussurro:

Sinto a tua falta.

Ele respirou fundo, fechou os olhos por um instante, como se aquelas palavras lhe batessem fundo no peito. Quando os abriu, havia algo cru e sincero ali, algo que fez o meu estômago revirar.

Também sinto a tua falta, Laura. Mais do que consigo explicar.

O silêncio entre nós foi preenchido apenas pela respiração mútua e pelo leve ruído da música que tocava ao fundo do meu quarto.

Eu nem sei bem quando é que isto aconteceu — Continuou ele, com um sorriso suave. — Um dia éramos só nós, amigos, conversas sem grandes expectativas. E agora… agora estás na minha cabeça a toda a hora.

O meu coração deu um salto.

Também estás na minha. E eu… — A voz falhou-me, mas respirei fundo e tentei de novo. — Eu acho que estou mesmo muito apaixonada por ti.

Ele riu baixinho, mas não de gozo. De alívio.

Se achas que és a única… então não tens prestado atenção.

Sorri, e senti-me tonta, mas ao mesmo tempo completamente viva.

Estamos tramados, não estamos?

Completamente. — Ele riu-se e passou a mão pelo cabelo. — Mas sabes que mais? Não me importo. Desde que seja contigo.

O meu peito aqueceu, e tudo o resto desapareceu.

Ali, naquela chamada, naquele momento, éramos só nós os dois.

E nada mais importava.

Não queríamos desligar a chamada. Havia uma sensação de que, ao fazermos isso, estaríamos a cortar um laço, como se, de algum modo, o simples ato de estarmos conectados naquele ecrã fosse manter a sensação de normalidade. Conversamos sobre o dia, sobre as pequenas coisas, tentando, de alguma forma, ignorar o peso do mundo lá fora.

Mas as palavras que dizíamos eram diferentes. Havia uma sinceridade profunda no jeito como nos olhávamos pela ecrã, como se cada gesto, cada palavra, fosse mais importante do que antes. O meu olhar estava mais suave, mas ainda carregava uma preocupação que não conseguia esconder. O Paulo, por sua vez, tentava manter o tom otimista, mas havia um certo vazio nos seus olhos que eu captava mesmo através do ecrã.

O tempo parecia estagnar. Quando o relógio indicava que era tarde, o Paulo olhou para o ecrã e disse, com um sorriso que não era bem sorriso, mas mais uma tentativa de manter a calma:

Até amanhã, bonita.

Fiquei em silêncio por um momento, de olhar fixo. Não queria que aquela noite terminasse.

Até amanhã... — Respondi, com a voz trémula, como se a despedida já tivesse algo de definitivo, algo que eu não queria enfrentar.

E assim, desligamos a chamada. O futuro estava em suspenso, e, embora tentássemos agarrar-nos um ao outro, sabíamos que, de alguma forma, estávamos a ser empurrados para um novo mundo, um novo ciclo.


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